EU queria estar em casa.
Eu devia estar em casa.
Mas em vez disso estou aqui, no casarão do meu melhor amigo, numa festa que eu nem queria vir.
Tudo porque ele mentiu pra mim, dizendo que era apenas uma noite de filmes normal. Com pipoca, guaraná, ele, eu e claro, a Lud.
Termino de beber a cerveja no meu copo só pra ter uma boa desculpa e dar uma escapulida.
— Ludmila. — chamo minha outra amiga, que também estava ciente da festa.
Mesmo estando do meu lado, ela não me ouve. Só não sei se é por conta da música alta ou pelo garoto de franja que ela está secando desde que nos sentamos na rodinha.
— Vou pegar mais tudo bem? Você quer alguma coisa? — cutuco a coxa dela.
A mais baixa solta um "Ahã?", mas não vira o rosto pra me olhar.
Mordo o lábio inferior, ainda receosa em me levantar.
Lud tem um histórico de fazer burradas em festas e mesmo que ela não tenha bebido mais do que duas latinha de cerveja, tenho medo de dar algo errado.
— Arranjei uma garrafa! Quem quer jogar Verdade ou Desafio!? — grita uma menina, agitando os outros adolescentes sentados perto da gente. É isso, essa é minha deixa. — Vai amarelar Dantas? — sua zombaria faz alguns pares de olhos me notarem.
Sorrio sem graça e aumentando a voz pra poder competir com a música e as risadas, respondo:
— Garganta seca, volto já! — Mostro o copo de plástico vazio. — Não se divirtam muito sem mim! — brinco, fugindo antes que Lud me puxe pelo braço e proíba de eu ir.
Cruzo o jardim a passos largos, entrando na casa pela porta de trás. Com um pouco de dificuldade — graças ao grande número de adolescentes eufóricos transitando pela sala.
Ainda observando o mar de gente, olho em direção ao sofá e tomo um pequeno susto ao perceber que ela está ali, sentada.
Monique Roux.
De camisa florida de botão, aberta quase por completo, mostrando a clavícula e um pouco do esterno, com suas bochechas fofas, o cabelo ondulado e ruivo, a risada frouxa e aquele olhar brilhante que faz minhas pernas tremerem.
Ao lado dela tem uma menina que só conheço de vista, sacudindo todo o corpo enquanto ri só pra poder esbarrar o braço no de Monique.
Aperto meu copo de tal jeito que ele se amassa e faz barulho. Pisco voltando a realidade.
Merda.
Kaique já deu muitas festas, mas dessa vez ele realmente se superou. Mesmo que vez ou outra eu esbarre em algum conhecido da escola, tem muitos rostos novos e isso até que é empolgante — tirando o fato de que essa devia ser uma festa exclusiva do terceiro ano, pra dar abertura a semana do trote. Que na verdade dura o ano inteiro, vai entender.
Talvez, se eu fosse uma pessoa extrovertida, poderia aproveitar pra sair dessa redoma que parece cercar Cassiopéia e me sufocar cada vez mais...
Cenários hipotéticos rondam minha mente, porém permanecem assim.
Hipotéticos.
Pois tem um motivo pelo qual Ludmila e Kaique precisaram mentir para me fazer sair de casa e definitivamente não é porque minha vida está super agitada.
Jogo o copo no lixo e sigo meu caminho até o corredor com a cabeça baixa, pra evitar que puxem assunto comigo, meu objetivo está a poucos metros de distância, impedido apenas por um trio de amigos sentados no corredor.
Não conheço os garotos, mas a menina sentada entre eles com seu cabelo raspado nas laterais, piercing na sobrancelha e camisa camuflada é da minha turma.
— AJ! — Drika diz meu apelido realmente alto e de um jeito risonho. O que provavelmente tem haver com seus olhos vermelhos e o cheiro de fumaça que os cerca, já que no dia a dia ela é um tanto antipática. Aceno pra eles. — Curtindo a festa? — pergunta, expirando uma quantidade admirável de fumaça.
— Tentando. — digo, tossindo e sentindo os primeiros indícios de falta de ar.
Asma, sabe como é.
Quando eu era pequena me atrapalhava bastante na hora de praticar exercícios físicos... Uma vez eu tive uma crise horrível enquanto brincava e desde então minha mãe passou a me proibir de fazer qualquer esforço exagerado — se bem que nem precisava, depois do que aconteceu eu automaticamente virei café com leite em todas as atividades que envolviam correr.
À medida que fui crescendo isso deixou de me frustrar, mas meus pulmões ainda entram em pânico em situações específicas.
Tipo quando fico perto de alguém fumando.
Coloco a mão por cima do nariz, notavelmente desconfortável e um tanto preocupada, afinal eu não trouxe a bombinha pro caso de uma emergência — porque na minha mente uma noite de filme seria uma atividade calma e fora da zona de perigo.
Se eu começar a passar mal e cair dura no chão tomará que não liguem pra minha mãe, se não ela me ressuscita na base da chinelada.
Ninguém fala nada durante alguns minutos, mas quando faço menção de ir embora, Drika continua:
— A gente tava pensando em ir no Caverna, tá afim? — observo ela passar o baseado pro garoto da esquerda.
— Hum... Infelizmente vou ter que recusar... — uma tosse escapa da minha garganta sem aviso prévio e depois mais outra e mais outra. Respiro fundo, com certa dificuldade. — Fica pra próxima pode ser!? — acrescento, totalmente sem jeito.
Como se eu fosse conscientemente aceitar um rolê com alguém da panelinha de esquisitos da sala!
Eu já sou o elo fraco do meu grupo de amigos, sair com Drika — mesmo que fosse mil vezes mais divertido do que ficar aqui — Seria como assinar meu atestado de insanidade.
Por isso, antes que ela diga qualquer outra coisa, me despeço com um "Tchau" sem fôlego e continuo o percurso até o único quarto vazio.
O quarto dos pais de Kaique é área proibida, todo mundo sabe. Porém eu tenho medo de abrir qualquer outra porta e dar de cara com sei lá... Gente transando.
Então, pelo menos quando entro, uso a poltrona perto do guarda-roupa pra barrar a porta. Não subo na cama e não mexo em mais nada — nem ligar a luz eu ligo.
Caminho até o outro lado do quarto, abro um pouco a janela pra entrar um ar fresco e me sento no chão.
Tiro o celular do bolso e disco o número do meu pai.
Espero não precisar ligar pedindo por ajuda, provavelmente eu vou voltar a respirar normalmente daqui há uns dez ou quinze minutos. É só por garantia.
Fecho os olhos, inspirando e expirando com cuidado enquanto pergunto pra mim mesma onde fui amarrar meu burro.
Me sinto cansada e tem mais haver com a interação social forçada que tive até agora do que com a asma.
Pensando melhor, todas minhas interações meio que são forçadas. E exatamente por isso eu passei o mês de férias quase desaparecida — se não fosse o emprego no cinema e as raras idas até a padaria da dona Filomena, muita gente agora estaria pensando que eu fui abduzida.
Quem me dera.
Infelizmente, eu só fiquei em casa mesmo. Perdendo tempo com bobagens e olhando sem motivação nenhuma pros livros em cima da minha mesinha de estudos.
Fiz vários nadas durante uns quarenta dias e pra quê?
Continuo exausta, igualzinho eu fiquei durante todos os doze meses do ano passado, porque aparentemente ficar cansada me deixa mais cansada.
Mas nem todos os dias foram nublados, seria uma baita mentira afirmar isso.
Eu li alguns livros, escutei muita música, pintei meu quarto de outra cor — passei uns cinco anos olhando pro mesmo tom de rosa, nem sei como não fiquei lelé da cuca — provei todas as receitas novas que meu pai decidiu experimentar e...
Descobri A série.
Acho que até perdi a noção de tempo do tanto que isso me deixou obcecada, pisquei um olho e a primeira semana de férias virou a última. Porém a euforia ainda permanece, meus dedos tremem toda vez que dou "play" num episódio novo, meu coração acelera e fico com falta de ar.
Mas de um jeito bom.
Eu estava planejando dividir essa minha nova obsessão com Lud e Kaique hoje... Talvez por isso me sinta tão jururu pela noite dos filmes ter ido por água abaixo.
Abro os olhos e desbloqueio a tela do celular, agora — bem mais calma — posso realmente me divertir desde que cheguei. Nada de sorriso sem graça, cumprimentar as mesmas pessoas, rir das mesmas piadas, ouvir as mesmas fofocas.
Quando eu assisto Horror Drama Club, nada, repito, absolutamente nada é capaz de roubar minha serotonina — ainda bem então que eu não vi o episódio que lançou ontem.
Clico no aplicativo — pirata, porque eu só vivo de pirataria — por onde estou vendo a série e depois na aba de favoritos.
Estou no capítulo dez da segunda temporada e sou extremamente grata pelos episódios gigantes. Cada minuto é muito bem gasto, mesmo que eu sofra pelos personagens que nem uma condenada.
Começo o episódio e é como se meus ouvidos esquecessem da música alta ou da gritaria que está rolando no resto da casa. Toda minha concentração é voltada para o grupo de adolescentes excluídos que fazem parte do clube de teatro da escola — aquele clichê estadunidense básico — e que tiveram o azar de se colocarem na mira de um assassino.
Pelos cinquenta e três minutos seguintes, o resto do mundo desaparece, sobrando apenas eu e meu celular.
Comments (0)
See all