Doro apreciava o cheiro das carnes que saía da panela. Mal podia acreditar que depois de tantos anos finalmente conseguiria reproduzir aquele prato, e teria a oportunidade de degustá-lo de novo.
Depois de reunir dinheiro suficiente, o cozinheiro havia obtido permissão para abrir seu próprio restaurante na estação espacial. Todos os dias aquele lugar recebia diversos viajantes, fossem refugiados de algum planeta em guerra ou apenas turistas espaciais em busca do exótico — um lugar perfeito para ele, que gostava de preparar e comer de tudo.
Havia passado anos como mercenário intergaláctico, e conhecido todo tipo de culinária. Sempre dedicava seu tempo livre a colher ingredientes e descobrir novas receitas. Seu sonho sempre fora ter um lugar onde as pessoas pudessem ter essa mesma oportunidade, de provar comidas de terras distantes ou esquecidas.
Agora, realizando esse sonho, havia criado um negócio que se estabeleceu muito bem, especialmente por ser o único local na estação que conseguiria atender a quase qualquer espécie.
Nas últimas semanas, vinha tentando reproduzir uma receita que conhecera anos atrás, com um colega de trabalho. Ele era meio esquisito, mas a comida que apresentou a Doro com certeza despertava o melhor de seu paladar. Porém, o dono do maior negócio gastronômico das Nuvens de Magalhães estava com um pequeno problema: não conseguia o principal ingrediente em lugar algum. Seu antigo colega dizia ser algo cultivado no solo de seu planeta natal, e não eram muitos os mundos que possuíam um ambiente propício da mesma forma. Ainda assim, um de seus mais caros fornecedores contratou uma equipe para obtê-lo, e, com tempo e esforço, finalmente haviam conseguido. Doro o cozinhava na panela, e estava prestes a usar os outros ingredientes.
Antes de adicioná-los, porém, foi interrompido por Hana, que bateu à porta.
— Dodô, hãã, acho que temos uma cliente — declarou a menina, entrando na cozinha. A única que o chamava dessa forma, não por ele ter dado permissão, mas simplesmente porque queria. — Hmmm, que cheiro bom! O que você tá preparando?
— Não é da sua conta — respondeu, de forma ríspida. O que não abalou a menina, que já estava acostumada com o tom de voz que seu chefe usava. — Diga a ela que já fechamos por hoje.
— Érr, então, eu disse, mas ela não desistiu. Disse que sentiu um cheiro familiar quando passou em frente ao nosso restaurante, e que está disposta a pagar a mais para provar o prato, se for necessário. Um bom olfato, né? — indagou a garçonete, sorrindo.
“Familiar, é?” foi o que ficou na mente de Doro. Tinha certeza de que o prato era bastante raro. Se por alguma chance a cliente o havia reconhecido, isso significava uma coisa.
— Diga a ela para entrar, então. É bom que essa história de pagar a mais seja mesmo verdade — respondeu, enfim jogando as coisas na panela.
Hana parecia surpresa com a resposta, mas alegre com a rara disposição apresentada pelo chefe. Saiu correndo dali, indo arrumar tudo para receber a cliente.
Andressa olhava ao redor enquanto a garçonete acendia as luzes e terminava de limpar o balcão, onde provavelmente a comida seria servida. O resto do lugar era espaçoso, tinha um conjunto de mesas redondas espalhadas e retangulares nos cantos, com direito a alguns sofás e janelas. O chão, as paredes e provavelmente o teto, pouco visível, pareciam ser feitos de lignum, um material que se assemelhava muito à madeira, porém era mais resistente e menos inflamável. As lâmpadas eram suspensas, e, como o padrão da maior parte da galáxia, amareladas. A jovem suspeitava que isso tinha alguma coisa a ver com a forma como eram feitas, mas não entendia o suficiente do assunto para dizer. O balcão ficava ao fundo e, atrás dele, um conjunto de frascos coloridos e alguns até brilhantes repousavam em um grande e complexo móvel, alto até demais na opinião dela. Ainda assim, o lugar era bonito, até elegante para os padrões da estação espacial. Fazia alguns meses que havia se tornado uma mercenária, e já havia passado em frente ao restaurante antes, mas nunca tivera interesse em entrar.
Bom, até agora.
— Quer que eu traga algo enquanto você espera ou...? — A garçonete sorriu para ela, deixando a pergunta no ar. Podiam ser quase da mesma espécie, pensou, não fosse a marca branca perto do olho e os espinhos nos braços despidos de Hana. Ainda assim, a mercenária a achou bastante bonita.
— Não, obrigada. Só quero o prato principal — respondeu, com sinceridade. Se seu olfato não estava enganado, comeria sua melhor refeição em tempos.
Desde que havia abandonado seu planeta, se alimentar nunca mais fora um prazer, mas apenas uma necessidade do corpo. Isso era parte do motivo de nunca ter se interessado em gastar muito dinheiro em um restaurante renomado como aquele, pois nenhuma comida seria como a que gostava. Como a de seu lar.
Porém, o cheiro que sentia agora remetia a lembranças de sua infância, principalmente de sua falecida avó. Tempos mais simples que não voltariam mais. Eram tantos pensamentos que vinham à mente de Andressa que a única conclusão a que conseguiu chegar foi de que precisava averiguar ela mesma se o prato servido seria aquele mesmo que sua família outrora tivera por tradição preparar durante as festividades.
— Você é humana, não é? — indagou a garçonete, despertando-a de seus pensamentos. — É a primeira vez que eu vejo uma. É uma espécie bem rara, ainda mais hoje em dia.
— Suponho que sim — expressou, um pouco cabisbaixa. — Diferente da maioria, todos viemos de um único planeta e que sequer existe hoje, então somos poucos.
— Ah, desculpa! Eu não sabia disso.
— Tudo bem, não é culpa sua. — A mercenária realmente não a culpava, era apenas um fato. Ainda assim, vez ou outra era uma lembrança que doía.
Uma porta mais ao fundo do recinto se abriu, revelando o que provavelmente era o dono do restaurante. Roxo e com diversos tentáculos, como um polvo, mas ainda assim possuía um par principal, posicionado como se fossem dois braços. Possuía três globos oculares, apesar de só um parecer funcional naquele momento. Ou talvez não fossem todos globos oculares. Mesmo depois de todo esse tempo, Andressa ainda não entendia nada de “biologia alienígena”, como ela chamava.
— Ah, então você é mesmo humana — afirmou o polvo, a encarando. A mulher não tinha certeza de onde tinha saído sua voz, apenas que a tinha ouvido.
— Sim, Hana constatou a mesma coisa um minuto atrás — respondeu, chamando a atenção da garçonete.
— Uhh, você sabe meu nome! É uma espécie telepata? Humanos leem mentes? — indagou Hana, curiosa. Seus olhos brilhavam como os de uma criança. Ao menos, como os de uma criança humana, pensou Andressa.
— Não, mas até eu consigo ler um crachá — retrucou, apontando para a roupa da garçonete. Uma peça metálica com o nome de Hana escrito na Língua Universal estava presa na altura do peito.
A mulher com braços espinhosos se mostrou claramente constrangida, com um olhar um levemente decepcionado. A mercenária ficou com um pouco de pena, quase se sentindo arrependida de não ter inventado uma mentira sobre seres humanos com poderes telepáticos e capacidades sobrenaturais.
Então, uma fumaça começou a sair da cozinha, e o cheiro tão familiar agora enchia as narinas de Andressa, que quase morria com a ansiedade.
— Se tá com essa cara de idiota só com o cheiro, provavelmente acertei na receita — afirmou a criatura roxa aparentemente responsável por sua refeição. Andressa ainda não sabia de onde vinha a voz, mas isso não a impediu de se ofender pelo comentário. — Eu vou lá buscar e já te sirvo. Vai custar quinze moedas Draiken — declarou o chef, por fim, se virando em direção à cozinha.
A mulher achou o preço bastante salgado, ainda mais para alguém acostumada a economizar com refeições como ela. Mas foi a própria que dissera estar disposta a pagar mais se fosse necessário, e não é como se não tivesse o dinheiro, então apenas aceitou.
Minutos que para ela pareceram uma eternidade se passaram, e então o polvo voltou, com um pano e uma tigela em mãos.
Doro normalmente não servia pessoalmente seus clientes, mas era uma situação atípica, em que só uma pessoa aguardava pela comida. Ele também estava curioso para ver a reação de alguém que provavelmente já conhecia aquele prato de outras ocasiões.
Pôs a tigela diante da humana e sentiu orgulho de si mesmo. Era exatamente como se lembrava: um caldo negro e brilhoso, com diversas sementes espalhadas e pedaços generosos das carnes. Também possuía uma folha no meio, o rastro de um dos temperos que havia usado. A mulher olhava para a tigela, incrédula. O dono do restaurante esperava que fosse uma incredulidade positiva, e sua dúvida foi logo sanada quando Hana entregou uma colher para a cliente. Esta, sem hesitar, pegou uma porção generosa do caldo com o talher e pôs na boca.
Uma pausa.
Segundos em silêncio se passaram, a mulher sem ter movido um músculo, ainda com a colher entre os lábios.
Então, Doro soltou um suspiro de satisfação. Lágrimas começaram a escorrer do rosto da humana, enquanto ela dava outra colherada. E outra. E mais outra. As lágrimas continuavam descendo, mas isso não impedia que continuasse a comer, quase em desespero. Parecia que não via comida havia dias, mas o chef sabia que não era essa a questão. Fosse como fosse, era uma das reações que mais gostava de assistir desde que abrira o restaurante.
Andressa quase se engasgava por causa da velocidade com que comia a feijoada. Memórias muito fortes vinham à sua mente. Lembrava de quando ajudava a avó na cozinha nos aniversários e reuniões familiares. Lembrava de comer com seus pais, enquanto falava do que tinha aprendido na semana. Lembrava das histórias que eles contavam antes de ela dormir, sobre as aventuras de seu pai e o passado de sua mãe. Não podia conter as lágrimas, e nem queria tentar. Depois de todos esses anos no espaço, nunca imaginou que se sentiria em casa de novo, mesmo que por um momento. Era como se todas as angústias, pela humanidade, por sua família, tudo que aguentara até ali — aquela refeição estava fazendo com que pusesse tudo para fora. Era a melhor refeição de sua vida.
Em poucos instantes, havia terminado uma tigela cheia. Só então percebeu os olhares sobre si. Hana parecia extremamente surpresa, o que fez a mercenária pensar que ela não devia estar acostumada com reações tão intensas à comida. O polvo, por outro lado, tinha uma expressão difícil de decifrar, mas parecia feliz, com um ar de certa superioridade. Não que Andressa conseguisse explicar de onde havia tirado essa percepção.
— Onde aprendeu a fazer feijoada? — perguntou, depois de usar um guardanapo que estava no balcão para limpar a boca, provavelmente preta de feijão.
— Feijoada! Era mesmo esse o nome! — exclamou o chef, parecendo animado. Retomou a postura depois de sentir o olhar da mercenária, que não estava muito feliz com suas grandes constatações. — Ah, bem, um antigo companheiro de trabalho me ensinou. Ele disse que era seu prato preferido em sua terra natal.
Andressa ficou em silêncio, enquanto processava aquelas palavras. Não restavam muitos humanos, ela mesma nunca tinha esbarrado com um nas Nuvens de Magalhães. Mas a mínima chance que existisse...
— Trabalho? Que tipo de trabalho?
— Isso te interessa?
— Que tipo de trabalho? — repetiu, a impaciência na voz extremamente perceptível. Ela sabia que tinham percebido que era uma mercenária, pois a tatuagem com o símbolo em seu braço estava bastante visível. Não esperava ter que usar a força, mas também não tinha problemas com a ideia.
— Do mesmo tipo que o seu — cedeu o polvo. Não havia medo em sua voz, mas provavelmente não era o tipo de informação que valia uma confusão em seu restaurante.
— Lembra do nome de seu colega?
— Alguma coisa com “O”, eu acho...
— Otto?! — Andressa se ergueu, colocando as mãos sobre a mesa. Começavam a ser coincidências demais.
— Sim, algo do tipo. Agora que você falou, os pelos da cabeça dele tinham a mesma cor dos seus. — respondeu o chef, apontando para o cabelo dela.
Não havia dúvidas, tinha que ser ele.
— Vocês ainda têm algum contato? Onde posso me encontrar com ele? — O entusiasmo e ansiedade em sua voz eram evidentes. Era a primeira pista que tinha sobre o pai em muito tempo. Quase havia perdido as esperanças.
— Bom, não temos contato há anos. Eu tentei falar com ele para conseguir reproduzir a receita, mas também não tive muito sucesso.
As palavras do dono do restaurante fizeram Andressa voltar a si. É claro que não seria tão simples. Mas ainda estava determinada a conseguir o máximo de informação que podia.
— E quando vocês perderam o contato? Ele disse alguma coisa?
— Vejamos... — Um dos tentáculos subiu, coçando o que parecia ser a cabeça do polvo. — Ele disse que ia mudar de divisão, para juntar mais dinheiro. Acho que foi isso. Nós já atuávamos na divisão B, então para ganhar ainda mais, ele só pode ter mudado para a divisão A.
A mercenária ficou pensativa por alguns segundos. Havia regras para ser mercenário, para evitar que pessoas tentassem lucrar em missões a que elas não sobreviveriam. Quanto mais alta a divisão, maior o risco, e consequentemente, maior o lucro. Atualmente Andressa estava na divisão D. Pensar que o polvo fazia parte da B a fez ficar um pouco constrangida por ter pensado que podia ameaçá-lo mais cedo.
Ela olhou para frente, encarando os dois. Era algo pequeno e vago, mas pelo menos agora tinha uma pista. Pôs dinheiro em cima do balcão e se virou para ir embora.
Antes de sair, virou-se para eles novamente.
— Obrigada pela feijoada, e pelas informações. Se continuar cozinhando isso, eu vou voltar pra comer mais. Até. — Despediu-se com um tchauzinho, devolvido pela garçonete que, apesar de parecer confusa, esboçava um sorriso.
Virou-se mais uma vez, abrindo a porta e saindo dali. Com certeza a refeição tinha valido bem mais que quinze moedas Draiken.
Autoria: Pedro Peixoto
Revisão e preparação: Luisa Peixoto
Título tipografado: Pedro Peixoto
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