Há dois anos me trouxeram a esse lugar, à convite de um forasteiro da qual até hoje não sei o nome, ele estava cansado e machucado em meio às ruas e acompanhado de uma jovem mulher, seu trem sairia em pouco tempo e eles que estavam desidratados e feridos não conseguiriam chegar a tempo, carregamos os dois até a estação, e já à frente do trem vi aquele velho estrangeiro chorar, dizia ele que precisava voltar mesmo já tendo chegado no lugar que tanto queria, porque precisava visitar sua família, e esqueceu a idéia de sua viagem, nos entregou as passagens e nos empurrou para dentro do trem, “Eu fico aqui, vocês vão no meu lugar”, senti que foi uma espécie de agradecimento por termos o levado para a estação. E aí eu cheguei aqui.
Acabei de acordar de um cochilo, me vejo sentado ao pé de uma árvore, a praça não está lá muito cheia - por enquanto - e os comerciantes começaram a se estabelecer agora, deve ser algo por volta das 10 da manhã, enfio a mão nos bolsos da minha calça e não sinto nada lá dentro, nenhuma moedinha sequer, sem café da manhã hoje pelo visto.
É segunda-feira, a primeira segunda do mês, e para ser sincero, eu odeio a primeira segunda. O centro comercial fica tão cheio que andar se torna uma tarefa difícil, e para mim, que sou baixo, enxergar por cima do ombro das pessoas acaba virando um esforço em tanto, além disso, tem tanta gente perambulando que o calor humano se combina com o do sol criando um ambiente abafado, chega a dar enjôo. Eu moro em Nova Iorque onde o calor não é assim tão escaldante, mas é quente o suficiente para azedar a comida que fica fora da geladeira
Decido me levantar, e aproveitar o vazio do centro para tentar achar algum bico, nessas horas tem gente em tudo quanto é canto esperando algum miserável se oferecer a algum trabalho que não tem ninguém pra fazer, geralmente, vou atrás dessas coisas no café da cidade, onde eu geralmente limpo o banheiro e lavo algumas louças para ganhar dez pratas, é pouco, mas já dá pro gasto, e como estou perto decidi tentar, dá para garantir o cafezinho de amanhã.
Chegando lá, abri a porta de vidro devagar, o sininho da porta badala algumas vezes liberando um som agudo que permeia todo o recinto, não chega a ser alto o suficiente para fazer as vozes de quem está conversando lá dentro se silenciarem, a minha presença chama a atenção de alguns indivíduos que me fitam dos pés à cabeça - em sua totalidade, homens brancos de terno.
-Vejam só, se não é o ruivo! - Disse o Seu Wilson, dono do café e recepcionista.
-Oi. - Respondi, me dirigi ao mesmo que estava com a coluna curvada e os braços encostados no balcão, o velho estava suado e seu rosto magro e enrugado expressava cansaço, ele não deve ter dormido muito bem última noite. - Tem trabalho pra mim?
-Tem não… Tem uns copos ali pra você lavar. Uns 10 copos. - Se ergueu e apontou para trás com o dedão sobre o ombro direito, vi a pia com os copos empilhados em duas torres de 5 copos cada. - Mas só isso mesmo, a Monique tá terminando de limpar os banheiros. Então só temos os copos pra você, te dou duas pratas por isso.
Fiz cara de insatisfação
-Tá bom, três, três pratas. E um cafézinho. - disse ele, estendi a mão esperando que ele me entregasse o dinheiro, e assim ele fez, enfiei as moedas nos bolsos e passei pra trás do balcão, logo abri o registro da torneira e me pus a lavar os copos. Vi a filha do Seu Wilson - a Monique - sair do banheiro, ela estava carregando um balde cheio de água sanitária e suas madeixas escuras estavam presas por um lenço cor-de-rosa, luvas de borracha cobriam suas mãos e seu rosto redondo pingava de cansaço e calor, sua expressão era de alívio. Olhou em volta e largou o balde ao lado da porta dos sanitários, percebeu minha presença e enxugou o suor da cara, acenou e sorriu de longe, logo a mesma voltou ao trabalho, pegou o balde de volta e se mandou pros fundos do estabelecimento.
-E a proposta de você se casar com minha filha, hein? Não vai aceitar? Ela gosta de você, é uma mocinha mais velha e muito bonita você não acha?
-Senhor Wilson, pela milésima eu sou pobre, não faz sentido você estar interessado neste casamento, e não, eu não quero. - Ditei enquanto esfregava os copos com uma esponja velha.
-Mas eu te acho um bom rapaz, gosto tanto de você, seria legal ter você na família.
Suspirei, todas as vezes que entro aqui sempre temos a mesma conversa, só fiquei quieto, não respondi. Terminei de lavar os copos e comecei a enxugar e guardar um a um, olhei pra televisão que fica no canto do estabelecimento, estava no jornal da manhã. “O pugilista africano Aren Bomani, ou como é conhecido no ambiente do boxe “Chico Café”, ou somente “Café” se encontra desaparecido, após passar por uma cirurgia…”
-Você ainda não aceitou o seu trabalho na quitanda do Arthur? - Seu Wilson interrompeu, tirou minha atenção da notícia.
-Ah… Você sabe que meu santo não bate com o daquele cara Seu Wilson.
-É, eu sei, o meu também não, nunca vou esquecer o que ele tentou fazer com a minha filha. - Acabei de guardar o último copo. Vi um dos homens ricos se dirigindo à porta, era gordo e estava suado, mas mesmo assim não tirava suas roupas de luxo pesadíssimas e quentes, ele já vai sair, encontrei a situação perfeita.
-Eu vou indo, Seu Wilson, já acabei. - Disse saindo de trás do balcão.
-Não vai querer a sua xícara de café?
-Nah… Esquece isso. - Olhei pra ele e fiz bico, tentando mostrar que de fato não fazia questão. Fui andando até a porta e passei ao lado daquele cara rico, senti o cheiro pútrido do seu suor de tão próximo que fiquei dele, e de forma sorrateira puxei a carteira de dentro do seu bolso e passei me espremendo no espaço entre ele e a porta.
-Ei, e vê se se cuida, Dai. - Ouvi o Seu Wilson gritar de lá de dentro.
Joguei a carteira dentro da minha bolsa de ombro, deve estar cheia de dinheiro, dei sorte. Dai é meu nome, Dai Sanji.
GANGSTA’S PARADISE
CAPÍTULO UM: Dia 18 de março de 1938.
Ao sair do café, empoleirado no nível entre a calçada e a porta me deparo com uma imagem completamente diferente do que vi mais cedo, o centro está cheio agora, várias barracas de vendedores ambulantes estão espalhadas e a praça se transformou numa grande feira, não consigo nem mesmo enxergar o outro lado da rua. Na multidão gente de todo tipo, classe, pele, corpo, idade…
Está calor e o sol começa a ferver a cabeça no pouco tempo que fiquei sob sua influência, enfiei a mão na bolsa que joguei a carteira roubada e tirei meu boné, é um presente do meu irmão adotivo, Lucca.
(Dia 10 de maio de 1922, quando nasci, minha mãe morreu durante o parto e o hospital pegou fogo, eu e o doutor que realizou meu parto fomos os únicos sobreviventes, o mesmo me entregou a uma senhora japonesa, a mesma colocou meu nome de Dai Sanji, significa catástrofe em japonês. A mesma mulher, já tinha adotado outra criança, de um ano - o Lucca. - cujos pais eram um casal de mexicanos que atravessaram a fronteira para os Estados Unidos de forma ilegal, ambos foram assassinados pela polícia, em razão de preservar o nome da família deles, a nossa “Avó” - por assim dizer - não mudou seu nome, Lucca Dominguez, é o nome completo dele. Minha mãe era uma dama sueca e a identidade do meu pai é desconhecida. Provavelmente era nórdico também.)
Desci do pequeno degrau entre a porta do café e o piso concretado da calçada, e num pulo me misturei no meio da multidão. Os vendedores estão distraídos com os clientes e a rua está cheia, é o momento perfeito para encher os bolsos, afinal a distração entre eles é mútua, com sorte, vai sobrar até alguma recompensa como uma maçã ou revista em mãos. Imerso no mar de gente, deixo a corrente humana me levar favorecendo a correnteza, atravesso os grupos e uso as minhas mãos pequenas para puxar as carteiras de quem estiver perto, vou jogando tudo na bolsa, também vou passando perto das barracas e pegando tudo que elas podem me oferecer, geralmente, comida. Logo chego no fim da linha e sinto meu ombro pesado de tão cheio que a bolsa ficou, vejo que já estou de frente pra rua que leva pro meu bairro. É hora de ir pra casa.
Eu moro num bairro em Nova Iorque chamado Cidade Torta, tem esse nome porque a arquitetura mal-acabada da região e os materiais usados nas construção dão um aspecto tortuoso pra cidade, os prédios são inclinados, o acabamento das casas são rústicos até demais e o lugar se encontra em estado de precariedade, é uma periferia americana. As ruas fazem curvas desnecessárias, e são sujas, cheias de ratos e baratas, um fedor pútrido permeia o lugar, a sorte que tenho é que minha casa fica mais nas bordas, mas quanto mais pro centro do bairro se vai, mais horripilante a situação fica.
Moramos num prédio que foi abandonado pela imobiliária, eu e Lucca. - para ser bem sincero, nós invadimos. - Ele tem uma engenharia normal comparado ao resto da cidade, sua estrutura não é torta e se ergue de forma imponente. Seus interiores são problemáticos, o térreo é vazio, só tem uma porta que leva pro corredor que tem as escadas, subindo as tais, você passa de andar em andar sem ser exposto ao que há lá, pois elas ficam numa sala à parte, e conforme você sobe, os andares vão mudando, os mais inferiores não possuem sequer paredes ou pilares que dividem os apartamentos, são somente salões enormes e vazios, a maioria dos inferiores foram ocupados por gangues locais. Os do meio já possuem moradias e apartamentos divididos, já os superiores possuem até alguns móveis, o edifício acabou sendo ocupado por um monte de gente desabrigada, como eu. Eu moro nos andares superiores, quando chegamos já tinha algumas coisas como uma cama de solteiro - sem o colchão. - um rack de madeira e um sofá o resto fomos achando na rua e trazendo para cá.
Cheguei finalmente no meu andar, cansado por ter subido tantos degraus carregando uma bolsa de pano tão pesada, de frente pra porta sinto uma sensação boa permeando minha alma, vou poder descansar.
Entrando no apartamento, jogo minha bolsa de pano em cima da mesa de carvalho, ela atinge o material de forma ríspida, achei que a mesa fosse quebrar no meio com a vibração do som metálico misturado ao bater da madeira, tudo que temos aqui é roubado ou achado no lixo, como disse antes. Depois disso me voltei para o lado e vi o espelho que pegamos num lugar qualquer da qual não lembro, e vi a situação deplorável que me encontrava, o cabelo oleoso e o rosto sujo, os olhos caídos dotados de cansaço, e a camisa branca e fina, surrada e empoeirada. Os suspensórios que sustentam a calça estavam quase rasgando, e a mesma, de cor cinza e o tecido nobre de alfaiataria não chegava a cobrir o calcanhar, de tudo que estou vestindo é a coisa menos surrada, meus chinelos estourados são segurados por pregos enferrujados, me sinto morto, não temos água encanada então não dá para tomar banho nem lavar as roupas, tiramos a água de um poço próximo daqui mas é só para cozinhar, a água que bebemos vêm dos mercados em fardos cheio de garrafinhas de vidro, no entanto, o fardo de semana passada já acabou, quando Lucca chegar ele trará um fardo novo, e eu poderei beber algo. Decidi descansar um pouco, me deitei na cama e senti o sono vir, mas não dormi, o descanso cessou quando ouvi a porta do apartamento abrir-se em meio a uma batida e o som agoniante das dobradiças secas, ouço uma voz familiar.
-Dai? Tá em casa? - É o Lucca.
-Estou sim, acabei de chegar na verdade.
-E como foi hoje?
-Não sei, não vi ainda… Mas roubei um burguês.
-Sério? - Ouvi ele se aproximando, e chegando à frente da porta, se apoiou na moldura e me encarou fixamente, não estava tão sujo quanto eu e não fedia, no mês passado roubou um perfume da qual não divide comigo, é só dele, os cachos em cima da cabeça se acomodavam de forma regular, ele pagou para que cortassem, já eu, não os corto há anos, ele não tinha o físico cansado, seu rosto estava sujo de fuligem e o bigode fino e que começou a crescer há pouco cobria seu lábio superior - por sorte, não tenho isso, acho feio que só uma desgraça. - Não consegui identificar sua expressão direito, já faz um tempo que não enxergo grandes distâncias, mas de longe enxerguei a pele parda de seu rosto queimada pelo sol, ainda que fosse mais escura que a minha, era notável a marca sobre seu nariz e bochechas, ele usava a corta-vento preta que seu pai deixou, mesmo nunca tendo conhecido o pai direito, ele sempre usa essa roupa que seu pai usava no dia que foi morto, nossa avó queria costura-la de volta, mas Lucca insistiu que deixasse o buraco das balas.
-É sério sim. Tava lá no café do Seu Wilson.
-Você foi lá e ele de novo te encheu o saco por causa da Monique não é?
-Ele paga bem - Me levantei da cama e fui andando em direção a porta. - Vamos ver o que pegamos hoje, vou pegar minha bolsa. - Pode parecer estranho, mas nem olhamos o que estamos roubando, só pegamos e jogamos nas nossas bolsas.
Chegando lá eu puxei a minha, precisei de mais força que antes para levantá-la e me sentei no chão, Lucca fez o mesmo.
-Abre a sua primeiro. - Disse, e o mesmo fez, Lucca abriu o zíper e começou a tirar as coisas de dentro, as carteiras que foram pulando para fora eu segurei, abria e via o que podia ter, só papéis com imagens de políticos ou figuras religiosas, e moedas, moedas, e mais moedas. Esse tipo de situação me faz refletir, essa é a realidade da América, é a verdade por baixo dos panos, é isso que somos para as figuras poderosas - insetos - enquanto alguns acreditam fielmente na intervenção de algo mais poderoso seja político ou meta-físico, ficamos consumindo o resto de seus excrementos, todos nós, eu gostaria de ter raiva disso ou acreditar em alguma mudança, mas isso me tiraria do meu estado de sanidade, a raiva e a fé irracional são engrenagens de circuitos fortes o suficiente para poderem controlar você, elas te entregam um resumo ideal de universo, corrompem sua visão de mundo e te tornam uma criatura ignóbil e bestializada, eu não posso me perder agora. Além das carteiras, vi frutas, legumes, produtos de limpeza, e até alguns queijos, mas nada fora do normal.
-Eu não dei sorte hoje… - disse Lucca, desanimado
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