Capítulo 01 - “Quase sempre”
03 de Março.
Apesar do frio do inverno canadense, persisti em trabalhar mais um dia.
Mesmo já vivendo em Ottawa há cinco anos e fazendo o mesmo trajeto a pé, os olhares sobre mim permanecem iguais. Rígidos. Como se eu fosse incomum.
Não que eu não esteja acostumado com este tipo de situação.
O caminho do apartamento que divido com meu amigo até o velho restaurante oriental onde trabalho não é muito longo.
Nesta rota só há uma coisa que sempre me surpreende: cartazes.
A polícia de Ottawa vem caçando um criminoso já faz um tempo. Eles dizem que ele é um terrorista conhecido por liderar uma gangue cujo os membros já foram envolvidos em diversos outros delitos.
Até então, a polícia não possui uma foto propriamente dita do líder dos criminosos, mas tem uma descrição que usaram para fazer um retrato falado. Vez ou outra este retrato muda já que eu sempre vejo uma atrocidade artística diferente estampada nos cartazes de procurado.
Esta história sempre foi estranha já que não se sabe o nome do criminoso e seu rosto não é conhecido. Me pergunto: Afinal, este cara existe mesmo?
Enfim, os 20 minutos de caminhada rotineira acabaram mais rápido hoje. Devo estar mais apressado por conta do frio.
Parei por um instante antes de entrar na instalação. Encarei meu reflexo nas portas de vidro.
Como neste momento, às vezes sinto que posso viajar para o passado e reviver grandes memórias da minha adolescência apenas de observar no meu reflexo o quanto eu envelheci. Esta é uma das minhas poucas definições de dor.
De qualquer forma, entrei.
O restaurante de comida japonesa sempre amanhece vazio, principalmente no período das 09:00 até 11:00, quando normalmente ocorre o primeiro turno.
As portas de vidro se fecharam logo atrás de mim. A decoração de lanternas coloridas e as plantas artificiais nunca estiveram tão impecáveis. O dono da loja, o Senhor Kaito, nunca deixava a desejar em nenhum quesito decorativo. Apesar de tudo, infelizmente seu empenho em manter a loja arrumada não faz com que seus funcionários sejam mais pontuais. Não é a primeira vez que eu sou o primeiro funcionário a chegar dentro do horário correto e me deparo com o velho senhor japonês cochilando sob o balcão do restaurante. Sempre que o encontro assim, percebo que o mesmo passou toda a noite se dedicando à limpeza e afazeres do estabelecimento. É o tesouro dele.
- Senhor Kaito? - Eu tentei dizer suavemente enquanto o balançava com delicadeza, para acordá-lo.
O ancião resmungou algo em sua língua nativa e bocejou em seguida. Também não é a primeira vez que o vi falar em japonês.
Ainda faltavam alguns minutos para o restaurante abrir, acredito que não fará mal deixá-lo descansando por mais um tempo.
Este lugar é pequeno mas acolhedor. As condições do senhor Kaito não são das melhores. Ele tem o suficiente para sobreviver com uma vida confortável, contanto que não gaste muito contratando tantos funcionários, o que resulta em um restaurante com apenas dois garçons, sendo um deles eu mesmo.
O atrasado de sempre é Edward Johnson, um jovem de 22 anos assim como eu. Na verdade, eu e Ed nos conhecemos muito bem já que dividimos o mesmo apartamento. Mesmo morando juntos, ele sempre decide dormir mais um pouco e acaba se atrasando para o trabalho.
Depois de organizar as mesas com cuidado a cada detalhe, finalmente mudei a placa para “aberto”, mesmo já sabendo que não viriam muitos clientes naquele período.
A minha rotina sempre foi isso. Acordar cedo, trabalhar, depois disso vem “a outra coisa”.
- Ah, Lu, você já chegou. - Disse o longevo de forma sonolenta.
- Bom dia, senhor. Ed logo chegará também.
Sempre sou o mais gentil possível com o senhor Kaito -o que, sinceramente ,é o mínimo. O coitadinho quase sempre é vítima de insultos dos clientes impacientes e mal-educados. Além disso, ele é meu chefe.
- Certo. Vou para a cozinha, então. Se precisar de alguma ajuda não hesite em me chamar.
O senhor Kaito bocejou e sorriu com os olhinhos quase completamente fechados. Ele caminhou até os fundos, onde jazia a cozinha. O velho japonês tinha algumas complicações em sua coluna. Ele sentia constantes dores nas costas mas se recusava a aceitar a minha ajuda em tarefas simples como se levantar de um banco muito alto ou pegar alguma caixa que fosse pesada demais para ele.
Pouco depois das oito o tão aclamado Edward Johnson havia chegado.
O rapaz mal havia vestido seu uniforme e já estava ofegante e com um semblante acabado. Mesmo com uma aparência um tanto descuidada e sendo um pouco desastrado, Edward é o principal motivo das jovens universitárias locais sempre irem visitar o restaurante.
Meu amigo e colega de quarto tem uma aparência chamativa e dentro de muitos padrões. Traços leves e pele bem cuidada completando o conjunto com lábios finos e olhos azuis-claros chamativos, acompanhados de cílios curtos e loiros como seu cabelo ondulado… Se bem que, o descrevendo assim, ele me parece apenas um menino popular de filmes adolescentes clichês. O que o faz ser bonito.
Ele e eu somos dois extremos opostos naquele lugar.
Edward além de ter a aparência perfeita, é simpático e possui uma espécie de charme natural cujo ele mesmo é incapaz de compreender. Somente sua presença já faz com que o restaurante consiga mais clientes. Já eu não sou dos piores. Sempre sou educado e, mesmo que não trate ninguém com informalidades como Edward, tento ao máximo ser gentil com todos os clientes já que, no fim das contas, quanto mais eles vêm, melhor para todos nós que trabalhamos lá.
- Desculpem o atraso! - Disse Edward enquanto apoiava as mãos nos joelhos. Ele ainda permanecia ofegante. Provavelmente veio correndo.
- Não se preocupe. Se recomponha. - Eu ri.
Confesso que às vezes me enraivece a ideia de que Edward sempre se atrasa para o trabalho. Isso faz com que eu e o senhor Kaito tenhamos que fazer as tarefas dele para compensar sua ausência mas, admito, aquele lugar seria bem chato se não fosse pela energia de Edward.
- Não fique bravo comigo, Lu! Por favor! - Disse Edward enquanto juntava ambas as mãos em um sinal de desculpas desesperadas. - É que ontem o meu outro emprego acabou tomando meu tempo e eu voltei muito tarde! Daí queria dormir mais um pouco! Você entende, não é?
Naquele momento eu já tinha em mãos uma bandeja e um pacote para atender ao primeiro pedido do dia; uma senhora que havia pedido sushi para agora e para viagem.
Eu sempre fui muito observador. Desde muito jovem a minha defesa para escapar de situações sempre era observar os detalhes de tudo e todos à minha volta, por isso, já fazia um tempo que eu havia percebido algumas coisas.
- Edward, vá lavar esse rosto e ajude Lu com os pedidos! O restaurante irá lotar hoje, estou sentindo! - Gritou o senhor Kaito, ainda na cozinha.
- Certo, certo! - Edward olhou para mim uma última vez esperando uma resposta ansiosamente. Ele sempre exigia respostas para seus questionamentos, ou ficaria cabisbaixo o resto do dia. Obstinado.
- Não estou bravo com você. - Eu disse de forma suave. - Mas não deveria trabalhar em dois empregos se você negligenciar um deles.
Edward aprovou com a cabeça e sorriu de forma larga e alegre ignorando o sermão que dei por último. Ele logo seguiu o conselho do senhor Kaito e foi lavar seu rosto.
Meu colega de quarto tem conhecimento do quão observador eu sou. Talvez seja por esse motivo que ele não me conta o porquê de seu segundo emprego fazê-lo voltar tarde da noite para casa, ou o porquê do mesmo sempre voltar com hematomas cujos ele se esforça tanto para esconder.
Mesmo com toda essa nuvem de segredos, Edward sempre age da mesma forma. Todo esse esforço em prol de uma vida independente onde ele possa pagar a própria faculdade. Uma caríssima, cuja já não me lembro mais o nome.
- Aqui, senhora Cooper. - Eu disse enquanto entregava o pedido à moça de cabelos cacheados e ruivos alaranjados como labaredas.
Ela sempre é a primeira cliente a aparecer em dias de semana, inclusive sempre com o mesmo estilo de roupas esvoaçantes e em tons de púrpura. Além disso, ela sempre usa bastante maquiagem, o que chama ainda mais atenção.
- Oh, muito obrigada, querido! - Ela disse de forma atirada enquanto segurava uma de minhas mãos.
Bem,... a senhora Cooper tem esse problema também; gosta bastante de contato físico.
- O inverno logo chegará ao fim, jovenzinho. Quando será que poderei vê-lo com um uniforme “com a cara do verão”, hm?
As falas da senhora Cooper sempre são bem sugestivas. Ela é uma das únicas clientes cujo fascínio era por mim, e não por Edward.
- Ah,... - E eu nunca sei como responder às provocações embaraçosas da senhora. - “Uniforme com a cara do verão”...?
Tenho medo até mesmo de saber o que ela quer dizer com isso.
- Você sabe, meu bem… - Ela sorriu e deslizou a mão pelo meu braço direito, segurando o punho da manga do uniforme que eu vestia. - Usando uma camiseta sexy, ou algo do tipo.
“Deus do céu, que o Senhor me proteja”, eu pensei.
- Senhora Cooper-- Eu tentei arrumar uma desculpa para fugir daquela situação, mas a moça ruiva e espalhafatosa me interrompeu.
- Oh, não seja por isso, eu poderia vê-lo sem camisa também! - Ela disse olhando nos meus olhos.
Deixei escapar uma risada nervosa e recolhi a minha mão. Sinceramente, tive medo dela me devorar.
- Preciso voltar ao trabalho. - Eu disse e não deixei de sorrir em momento nenhum. Por mais vergonhosa que fosse a situação, ela era uma boa cliente e eu a trataria como tal, mesmo que minha saída das proximidades daquela mesa pudesse ser interpretada facilmente como uma fuga desesperada.
Aguardei escondido atrás do balcão por mais clientes após isso.
- Ei,... - Não demorou muito para Edward se aproximar e dar conta da situação. -- … o que senhora Cooper te disse? Você saiu correndo de lá.
As palavras do loiro saíram como sussurros por entre risos reprimidos.
- Ela disse que quer me ver de camiseta… - Acabei fazendo uma careta involuntária enquanto mexia no caixa para disfarçar. Não queria chamar mais atenção para mim, mesmo que estivesse apenas sussurrando. - … ou sem.
Edward quase engasgou ao me ouvir enquanto bebia um gole da garrafa de água que deixou sobre o balcão. Ele riu, e riu mais ainda após olhar ao fundo do estabelecimento e avistar a senhora Cooper comendo lenta e “sedutoramente” seu sushi enquanto me encarava de forma totalmente sedenta.
- Não me surpreende. Você nunca usa camiseta aqui! Mesmo tendo um corpo atlético.
- Não é esse o problema. - Eu disse de forma automática.
Edward apoiou o rosto em uma das mãos e repousou o cotovelo sobre o balcão. Ele sabe do que eu estou falando. Tanto sabe que apenas cessou as risadas e encarou-me com uma expressão indiferente.
- Não acho que ter algumas cicatrizes seja algo horrível. O que importa é que o número delas não aumenta mais. - Disse o loiro.
- Penso desta forma também. - Eu suspirei em meio as minhas palavras, cansado mesmo com o dia mal tendo começado. - Mas não quero que tenham pena de mim.
- Entendo.
Edward compreendia minha questão muito bem, por isso tratava de forma indiferente qualquer coisa referente a este assunto.
Após crescer tanto, comecei a rejeitar qualquer categoria de olhar misericordioso que caía sobre o “menino com cicatrizes nos braços”. Não era mais algo que eu precisava e sim que eu abolia. Não preciso mais da pena de ninguém. Na verdade, nunca precisei.
Contudo, pessoas como a senhora Cooper ainda existem em grande quantidade. Pessoas que não veem além da imagem que está a sua frente. No entanto, entendo que deve ser confortável não saber toda a verdade sobre as pessoas.
O dia se passou e o céu já tornou-se alaranjado com o fim do entardecer. Logo a noite cairia.
Edward já havia voltado para casa. Disse que tentaria pegar mais cedo no segundo emprego para ter mais tempo de sono.
Fui pegar meus pertences alguns minutos depois do loiro ir embora.
- Lúcifer, antes de você ir, pode me ajudar a cortar alguns legumes para amanhã? Quero deixar tudo preparado. - Disse o senhor Kaito enquanto colocava a cabeça calva para fora da cozinha e me chamava com uma das mãos.
- Claro.
Me dirigi à cozinha e, como o restaurante já estava para fechar, confesso que relaxei um pouco mais. Dobrei minhas mangas e peguei logo uma das facas para ajudá-lo com os legumes.
O senhor Kaito sempre manteve a linha entre funcionário e chefe bem firme separando-o de mim e de Edward mas, estranhamente, hoje esta linha pareceu se romper.
O idoso encarou-me por longos segundos seguidos e, mesmo sem encará-lo de volta, eu sorri. Percebi tamanha curiosidade mas total decência de não querer perguntar diretamente.
- Tive uma infância difícil. - Eu justifiquei ao invés de fazê-lo perguntar. - Só isso.
- Ah, Lu... - A voz do senhor Kaito soou triste e cabisbaixa. - Sempre foi um menino com tanta luz. É uma pena que a vida tenha sido tão cruel contigo.
“Você não faz ideia”, eu pensei enquanto desviava meu olhar para meus antebraços por um instante. Realmente, não havia como não chamar atenção. A irregularidade que as cicatrizes formavam na minha pele, a cor diferente que elas traziam além de cada uma ter uma profundidade, um tamanho diferente. Mesmo eu tendo crescido tanto ao redor delas, elas ainda permaneciam lá. Gigantes.
Acho que me distrai demais pensando nisso já que acabei cortando o próprio dedo enquanto deslizava a lâmina por uma cenoura. O senhor Kaito logo veio de prontidão.
- Oh, vou pegar um curativo! - Ele foi apressado, porém lento e com uma das mãos sobre as costas, até a despensa, onde haviam kits de primeiros socorros escondidos embaixo de várias caixas de suco.
Ele nem esperou minha resposta e já estava pronto para me ajudar. Também era algo cujo não estava acostumado.
E também… há outras coisas que eu não compreendo.
A sensação de ver meu dedo indicador cortado com o sangue escorrendo por toda a sua extensão era como se não fosse real. Eu não sentia nada. Se não fosse pela visão do meu ferimento, eu jamais saberia de sua existência.
O senhor Kaito logo retornou e trouxe contigo curativos.
- Vamos, sente-se, sente-se. - Ele fez alguns sinais para que eu me sentasse em um banco próximo a ele.
- Me desculpe, senhor. Acabei me distraindo e o atrapalhei. - Eu disse enquanto ria de forma sem graça, tentando disfarçar. - Prometo compensá-lo com mais trabalho amanhã.
- Não seja bobo, foi um acidente. - Ele disse enquanto limpava minha ferida. - Foi um corte bem fundo… Deve estar ardendo bastante.
Pois era este o ponto. Não doía.
- Prontinho! - O senhor Kaito sorriu vitorioso após colocar um band-aid no meu dedo indicador.
Eu agradeci, mesmo não me importando muito com esse tipo de coisa. Se não tivesse sujado a tábua e a faca de sangue eu poderia tranquilamente ignorar o corte e voltar ao meu trabalho.
De qualquer forma, limpei a bagunça e fui embora.
O céu já estava escurecendo.
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