Seu pesadelo começou como todos os outros. Estava no topo da ponte de Manhattan, observando a grande destruição causada na ilha por uma força descomunal. Os gritos de socorro vinham de todas as direções, famílias choravam suas perdas e mães pediam seus filhos de volta para uma divindade que não respondia.
Mas diferente do que se podia imaginar, a garota de cachos ruivos olhava para tudo aquilo com um sorriso no rosto. Suas mãos, cobertas de sangue, seguravam o coração, ainda pulsante, da mulher aos seus pés. Não conhecia sua vítima, mas olhava atentamente para seu rosto, que se tornava pálido conforme a vida escapava de seu corpo. Ao olhar para a frente, viu duas pessoas chocadas com a atrocidade que a garota cometera.
Porém, antes que pudesse olhar em seus rostos, sentiu algo em seu bolso. Toda aquela visão repentinamente se tornou um breu absoluto, até que uma luz alaranjada fez seus olhos marejados se abrirem. Estava deitada abaixo de uma figueira, no topo de uma colina em uma área rural. O cheiro e o silêncio do campo a lembravam de casa e acalmavam sua mente.
Pegou seu celular e notou o alarme, já era final de tarde. Estava quase na hora de sua festa de formatura. Todos da sua turma no colégio iriam se reunir para comemorar o fim do ensino médio.
Levantando seu torso, se espreguiçou e encarou o céu através das folhas da árvore. Sua mão estava esticada em frente aos olhos, cobrindo os raios de sol que passavam pelas folhas, e, com isso, pôde observar a brilhante gema carmesim que carregava em seu anel.
A jovem limpou os cantos de seus olhos azuis e ficou de pé, ajeitando a jaqueta branca que ganhou de sua melhor amiga e voltando para seu Impala.
Após cerca de meia hora, chegando no local do encontro, encarou aquela lanchonete com olhos melancólicos. Mesmo de longe, conseguia sentir o cheiro familiar e delicioso dos hambúrgueres na grelha. As vitrines estavam brilhando de limpas como sempre, e a placa neon começava a iluminar o ambiente com a chegada da noite. Aquele já foi seu local favorito, onde passara horas com sua melhor amiga e seus colegas de classe, mas hoje, a visita apenas causava um aperto no peito.
A garota respirou fundo e, após estacionar seu carro, seguiu até a entrada. Assim que entrou, um homem de cabelos desgrenhados e barba por fazer, segurando uma bengala e usando óculos escuros, levantou um copo em direção a entrada:
— E a última a chegar é, para a surpresa de ninguém, Yohane Pride!
— Nem na despedida conseguiu chegar no horário, ruiva? — Um garoto loiro de olhos castanhos comentou sorrindo, segurando o ombro do homem.
Veja bem, aquele era Marko Hoffman, o professor de física da turma e o único que se dispôs livre para o evento. A ruiva sorriu sem jeito enquanto coçava a cabeça e foi até o balcão, sentando-se ao lado do tutor. O garoto loiro já havia se afastado. Um longo momento de silêncio se instalou entre os dois, até que o professor resolveu iniciar a conversa.
— Sabe, eu perdi a visão há mais de dez anos, e mesmo após todo esse tempo, eu consigo perceber quando você não está bem.
Encarou o balcão enquanto bebia o líquido em seu copo. O cheiro era característico de uísque.
— É, pra um professor cego, você sempre foi bom em ver dentro das pessoas. — Sorriu tristemente e pediu uma bebida para o garçom.
— Algo mudou nele?
— Não. O mesmo pesadelo de sempre. Manhattan completamente destruída, uma mulher no chão, cheia de sangue... — Lembranças de noites aterrorizantes voltaram, a fazendo engasgar com as próprias palavras. — E o coração dela... na minha mão. Após todo esse tempo eu acabei me acostumando com ele, mas o que não consigo engolir é essa sensação no meu peito. São horríveis, cruéis e me fazem querer vomitar, mas algo dentro de mim, lá no fundo... gosta de ver.
Ele segurou a mão de Jô e a encarou com empatia no rosto. Mas antes que pudesse falar algo, ouviu alguém chamar a atenção de todos.
— Pessoal, agora que estamos todos reunidos aqui, acho que está na hora das considerações finais do nosso professor. Marko, por favor.
Com o rosto enrubescido, se levantou com ajuda do jovem de antes e foi até o centro para que todos pudessem vê-lo. Com um pigarro, iniciou:
— Quem diria... finalmente chegou o dia em que vou me livrar de todos vocês. — Todos deram risada. — Brincadeiras à parte, é maravilhoso ver como vocês cresceram desde que chegaram na escola. Claro, eu digo “ver” no sentido figurado, por motivos óbvios. Durante esses anos, todos nós construímos uma relação mais forte e importante do que a de alunos e professor. Eu considero todos vocês meus amigos e creio que vocês também pensem o mesmo sobre mim... Ao menos espero, caso contrário eu poderia chorar aqui mesmo. De todo modo, eu espero que vocês se lembrem de tudo que aprenderam nesses anos, e não me refiro apenas ao conteúdo de sala de aula. Creio que tudo o que houve nesses anos, principalmente há alguns meses atrás, mudou muito a forma como vocês veem o mundo, talvez até tenha influenciado na personalidade de alguns. Mas independentemente da situação, nunca deixem de lado seus princípios e vençam na vida da forma mais honesta e justa possível. Espero ver cada um aqui dando início a jornada para realizar seus sonhos e ambições. Um brinde a todos vocês!
Todos levantaram seus copos e gritaram comemorando.
— Mas antes de podermos começar a aproveitar essa despedida, eu gostaria de pedir um minuto de silêncio por nossa querida colega e amiga, Carolyn White, que nos deixou ano passado. Espero que ela possa ter encontrando seus pais em um lugar melhor.
Os presentes ficaram em silêncio, em respeito a jovem colega de classe que havia falecido. Jô abraçou sua jaqueta, lembrando da antiga dona da roupa.
Comments (0)
See all