O que exatamente é uma história? Como podemos contá-la sem que ela pareça entediante? O que a tornaria interessante? As interrogações só dificultam um pouco as coisas, mas elas não são más. Talvez um pouco sádicas e controladoras, até um pouco tóxicas às vezes, mas elas não são de todo ruins. Talvez as dúvidas só se tornem tóxicas porque as ignoramos ou porque não as deixa livres para partir. No fim, são um pequeno fragmento nosso que nos obriga ao cárcere. No fim, Sirius é um mundo de dúvidas, cheio de terrores que se materializam e caçam seus criadores para além das barreiras da sanidade. Talvez seja uma história cruel ou engraçada nas suas contradições e hipocrisias. Com certeza não é a mais trágica, nem a mais cômica, por mais que tenha tragédia e riso. De fato, é apenas mais uma história, uma que conta outras muitas, é a nossa história.
Sabe, no fim das contas, quem cria o universo, é o mais entediado.
É chato ser a Divindade Suprema. Não é como se alguém soubesse da sua existência. Parece com construir um barco dentro de uma garrafa: todo aquele trabalho, mas você nunca vai velejar nele, senão, ele quebra. Eldur era essa artesã metafórica, mas seus barquinhos eram mini universos dentro de bolas de cristal. Suas antigas criações ficavam à deriva no espaço infinito, fazendo o céu estrelado mais puro e triste. Um belo cemitério, era o que ela pensava.
No momento, Eldur estava completamente entediada. Seu último mundo havia sido quebrado por consequência de uma guerra, assim como o penúltimo e o outro anterior a esse... Aquilo estava realmente irritando-a, tanto que tentou se livrar totalmente dos humanos em sua obra seguinte. Devo dizer que foi um fracasso. Descobriu que humanos são como pragas, sempre vão surgir, se desenvolver e destruir tudo ao seu redor. E, se não forem os humanos, serão os humanoides. Muito irritante.
Ao invés de continuar tentando acabar com a raça humana, ela pensou em outra coisa. Queria filhos! Afinal, a Divindade Suprema não precisa de outra pessoa para ter filhos, ela só precisa criá-los. E foi isso que fez, criou três crianças: uma menina irritadiça de cabelos pretos, um menino arrogante de pele azul, e uma criança tímida que mudava de forma constantemente. Vendo pequenas formas de vida com as quais ela podia interagir, Eldur surtou por um breve momento, queria mimá-los de qualquer forma, então deu presente para todos. Obviamente, seus presentes não eram brinquedos infantis comuns, na verdade, nem poderiam ser chamados de brinquedos. Para a menina deu o Vazio, para que ela pudesse ter paz interior, para o menino, deu a Verdade, para que ele pudesse ver a verdade dos outro e ter empatia ou não, para a terceira criança, deu a Morte, para que ela tivesse algo imutável em sua existência inconstante. Infelizmente, Eldur havia esquecido que crianças sempre crescem e saem de casa em algum momento. Os três observaram sua mãe durante séculos até decidirem criar o seu próprio mundo.
Era uma estrutura interna complexa de cinco pilares: Vida, Morte, Vazio, Verdade e Existência. Vida e Existência foram criadas a partir do Vazio e da Verdade, respectivamente. Morte não queria se envolver muito, pois achava que iria estragar tudo se fizesse algo além do necessário. A estrutura externa consistia em um céu negro, sem lua ou estrelas e uma enorme árvore enraizada em um pedaço de terra flutuando sobre um lago cuja água não os refletia. O horizonte, única separação entre céu e lago, era delimitado por uma linha branca enevoada. O céu representava o Vazio, a árvore era a Vida, assim como a terra era a Existência e o lago era a Verdade. A linha do horizonte foi onde os primeiros habitantes daquele universo fizeram seu mundo, Brúnar. Eram espíritos da natureza, livres e desregrados. Um deles, Raaston, era amigo da Árvore da Vida, sempre conversavam. Eldur assistia bem de longe em sua morada celestial, via a relação entre os dois se desenvolver. Morte também observava os dois de longe, admirando o envolvimento que eles tinham. Quando aquela criança tentou se aproximar de sua sobrinha, houve uma comoção e Morte acabou tocando em um dos galhos da Árvore da Vida. O galho secou e se partiu, a seiva escorreu e formou o Rio do Tempo. Agora todos sabiam o que significava a morte de algo, todos conheciam o tempo e o medo.
Todos temiam Morte.
Eldur sabia que, com isso, o mundo estava completo, o tempo estava correndo e todas as peças se encaixavam. É assim que um mundo começa, com ausência, ruptura e medo. Ela sabia disso, seus filhos sabiam disso, mas seus netos e os primeiros habitantes não sabiam. Era normal que eles não soubessem, não havia registro disso ocorrendo na história deles. Pela primeira vez, os filhos de Eldur souberam a importância da memória. A Divindade deitou confortavelmente e se pôs a observar o universo de seus filhos, a estrela mais brilhante que ela chamou de Sirius. Seus filhos vinham ocasionalmente à sua morada para contar suas descobertas e pedir conselhos a ela, Eldur gostava das visitas e, em algum momento, separou sua onisciência de si mesma e a guardou em uma caixa, protegida pelo manto da realidade, bem ali, em sua mesa de trabalho. Aproveitou uma vez que os três estavam juntos e deu um nome para cada um deles: ao Vazio deu o nome de Fjarverandi, a Verdade deu o nome de Falinn e para o nome de Morte decidiu por Vinur. Nomeou Vida e Existência como Yggdrasil e Grunnr.
Passava a maior parte do tempo deitada, olhando a estrutura e a história de Sirius se desenvolvendo. Acabaram sendo mais complexas do que o esperado, Yggdrasil era uma chave de portal que interligava centenas de mundo diferentes, cada um com sua história e configuração particular e, mesmo que eles estivessem interligados, eles não necessariamente poderiam se comunicar uns com os outros. O único que podia entrar em qualquer mundo a qualquer momento era Raaston, mas ele estava traumatizado demais para se aproximar da Árvore. Os filhos da Divindade criaram suas próprias fortalezas com o seu próprio povo. Fjarverandi fez sua fortaleza flutuante, seus habitantes, os tómir, nascem e se alimentam do vazio de cada um, seja esse vazio em forma de paz, aceitação, desistência ou de tristeza profunda. Os tómir sussurram nos ouvidos alheios aquilo que elas menos querem ouvir. Já Falinn, em seu território no lago, tinha habitantes diferentes, os skuggar, que representavam os desejos reprimidos de cada ser do universo, eram o instinto primitivo de cada um. Sua morada, sem a ajuda de Vinur, seria uma prisão para todos os skuggar. A terceira criança sugeriu que Falinn construísse uma biblioteca submersa, seus escritos infinitos conteriam a verdade de cada um, de cada história, os ceifeiros poderiam usá-la para julgar as almas de forma justa, lendo o livro de cada alma sob julgamento. Já Vinur não tinha um território ou um povo próprio. Os ceifeiros não eram seu povo ou seus subordinados, eram apenas pessoas que haviam morrido e tinham uma dívida com outros ceifeiros (mais adiante, contarei a história da primeira ceifeira). Eldur ficava muito preocupada, já que aquela criança era a única que sempre escapava de sua visão. Às vezes, ela recebia uma visita, mas essas também se tornaram menos frequentes, até que Vinur parou de aparecer.
Eldur estava entediada novamente.
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