- Textos com travessão (—) representam diálogos de personagens.
- Textos em aspas duplas (“”) representam pensamentos do personagem em questão.
- Textos em itálico (exemplo) são para palavras escritas propositalmente erradas, onomatopeias, interjeições, falas de outros personagens dentro de um pensamento e, por fim, palavras ditas com mais intensidade.
Era uma noite muito fria, não se via um animal sequer, somente árvores e outras plantas cobertas de neve. Uma tempestade estava caindo sobre toda a ilha Ezo, fazendo com que até mesmo as gigantescas árvores balançassem. O único som era do zumbido dos ventos agitados. Parecia, aos olhos dos moradores, que os deuses estavam furiosos.
Só se podia ver um senhor enfrentando toda a nevasca.
“Preciso ir rápido!”, pensava ele.
Ele caminhava apressadamente em direção a uma pequena casa feita de bambu e palha. Possuía longos cabelos brancos e seus olhos se assemelhavam a uma esmeralda, brilhando com a luz da tocha que segurava em sua mão direita, a qual iluminava aquela longa escuridão. Usava um quimono cinza junto de um hakama preto e portava, em sua cintura, uma katana acompanhada de uma machadinha. No cabo desta, havia a gravura de um dragão.
No pescoço do homem, um cachecol balançava rapidamente devido ao vento. Por fim, segurava um pequeno pergaminho manchado de sangue em sua mão esquerda.
— Quase lá — sussurrou o senhor, arrumando seu cachecol.
Quando chegou um pouco mais perto da casa, pôde ouvir uma garota gritando desesperadamente.
— Não! Por favor, ele é apenas um bebê!
Logo que ouviu os gritos, partiu em disparada. Assim que chegou e apressadamente abriu a porta do local, viu uma cena desesperadora. À sua esquerda havia uma mulher desmaiada sobre o chão. Ela possuía cabelos negros, pele clara e usava roupas simples e puídas. Já em sua frente, havia uma garota de cabelos brancos e olhos verdes. Parecia uma versão jovem e afeminada do senhor. Havia acabado de ganhar um bebê e estava deitada sobre o chão de madeira, ao lado da fogueira no centro da casa. Seu rosto estava pálido e seus olhos demonstravam extremo cansaço. À direita do senhor, havia um padre sustentando o bebê nos braços.
— São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate — rezava ele, antes de tentar bloquear a respiração da pobre criança.
Ele continuou dizendo, mas agora com uma expressão aterrorizante:
— Sede nosso refúgio contra as maldades e as ciladas do demônio… — A criança passou a berrar devido ao sufocamento.
— Meu neto!
O senhor rapidamente sacou seu machado e lançou-o contra ele, acertando suas costas e interrompendo seu assassinato.
— Maldito! — gritou, tossindo um pouco de sangue.
Notando que o padre estava prestes a cair, o senhor correu em sua direção e tomou o menino para si.
— Calma, calma, está tudo bem — disse enquanto passava os dedos entre os cabelos do menino.
A criança extraordinariamente se acalmou, então o senhor colocou-o sobre um berço feito às pressas com palha e cordas.
— Espere só um pouquinho, tá bom?
Em seguida, exclamou contra o padre que agonizava no chão:
— Desgraçado! Salvei sua vida dos samurais que te caçavam, para então tentar tirar a vida de meu neto? Quem é você para decidir o destino deste garoto?
— Garoto? Acha mesmo que ele é um humano? Você está protegendo um demônio, seu bastardo!
O padre novamente tossiu sangue e então tapou a boca com uma das mãos. Enquanto isso, o senhor seguia em direção a menina pálida.
— Filha! Desculpe-me pela demora!
— Tudo bem, pai.
— Como você está?
— Sinto que já estou deixando este mundo.
Ela tossiu sangue enegrecido e continuou dizendo:
— Pai, eu pequei, então devo pagar pelo que fiz, tenho que pagar por meus pecados. Então, por favor, cuide bem de meu filho. Não deixe que ninguém o maltrate, ensine-o como ser um homem justo e honrado. Nunca deixe que ele suje suas mãos com sangue.
O senhor começou a derramar lágrimas.
— Isto realmente é necessário? — clamou desesperado, olhando para o alto — minha pequena garotinha, como pôde fazer algo assim de novo? Você não tem amor por seus próprios filhos?
O padre tirou a mão ensanguentada de sua boca e vociferou:
— Você terá o que merece! Pagará por seus pecados no tártaro! Que Deus tenha piedade de ti!
— Cale-se! — berrou o senhor, cheio de raiva.
A menina levou a mão esquerda para o rosto de seu pai, enxugando as lágrimas que escorriam de seus olhos.
— Não tenha ódio do criador, ele não é culpado pelas besteiras que fiz, pelos pecados que cometi.
— Você tem razão — concluiu o senhor ao limpar os olhos.
A menina tossiu sangue novamente.
— Pode ir em paz, filha. Cuidarei desse garoto com tudo que tenho, até que o criador também me leve. — Olhou para o berço — Como irá se chamar o meu netinho?
— Pensei em Ishida, pois significa plantação pedregosa. Ele terá uma mentalidade muito forte e ninguém mudará seus objetivos. Como um campo que ninguém consegue plantar.
— Certo, Sasaki Ishida. Um belo nome filha, um belo nome.
— Sim — falou a menina, perdendo a consciência — adeus, pai…
Ela estava morta! Seu pai fechou seus olhos passando delicadamente uma das mãos em seu rosto emagrecido e gelado.
— Descanse em paz.
Naquele momento, a parteira desmaiada recobrou a consciência e abriu seus olhos lentamente.
— O… o que houve aqui? — falou a mulher, olhando ao redor.
O senhor pegou um terço que estava na mão direita de sua filha e apertou-o, dizendo:
— Perdoe-me pai, mas tenho que proteger esse bebê.
Levantou, retirou sua espada da bainha e seguiu em direção a moça.
— Desculpe-me — murmurou ele, com um olhar frio.
A parteira, percebendo algo estranho no homem, tentou se afastar, mas a parede a bloqueou.
— O que você está falando? O que fará comigo senhor Sasaki?! — Ela estava desesperada. — Pelo amor de Deus! Eu tenho uma criança me esperando!
Ele ficou defronte a mulher que pedia desesperadamente para ir embora e a matou, atravessando o centro de sua testa. Em seguida, retirou a espada, agora toda ensanguentada. Após assistir a tudo aquilo, o padre também deu seu suspiro final.
— Você… você é um… monstro.
As mãos do senhor tremeram. Havia acabado de tirar duas vidas inocentes.
“Estou fazendo a coisa certa?”, pensou ele após soltar a espada.
De repente o bebê soltou uma doce risada, então o senhor caminhou em sua direção. Ao chegar no berço, tomou um susto! Os olhos do garoto estavam dourados e brilhavam como o sol.
— Já está acontecendo, devo me apressar!
O senhor pegou o pergaminho manchado de sangue e o abriu. Havia, no centro, uma circunferência que guardava uma lua presa por 6 arestas, as quais formavam uma pirâmide.
— Certo, agora faço…
Ele fez um corte em seu dedão direito e desenhou alguns símbolos sobre o corpo do garoto, usando o sangue que escorria.
— Você não irá pagar pelos pecados de sua mãe!
Colocou o pergaminho sobre a barriga do garoto e este começou a gritar, até que… poderosos relâmpagos acertaram a casa e ao redor violentamente.
As luzes se apagaram! O escuro tomou conta da casa e toda a região. Por alguns minutos não se pôde ouvir exatamente nada, até que uma porta se abriu no centro da escuridão e um homem bem velho adentrou o local.
— Levante-se! Isso é hora de dormir, Ishida? — Suas palavras confirmaram que tudo aquilo não passou de um terrível sonho do garoto.
O jovem sobressaltou sobre a esteira de palha onde dormia e seu avô perguntou assustado:
— Calma, o que aconteceu?
— Nada, foi apenas um pesadelo — respondeu Ishida, com uma respiração ofegante.
— Enquanto dormia, preparei sua comida. Sirva-se e venha me encontrar nos arrozais.
— Certo.
O velho saiu e fechou a porta.
— Estranho — disse Ishida, olhando ao redor.
Estava confuso, até que sentiu um cheiro delicioso, um cheiro que estava dominando todo aquele espaço. Quando olhou para sua esquerda, enxergou uma fogueira que ficava no centro da casa. Ela havia sido apagada recentemente e nela estava um espeto de madeira com um peixe fisgado exalando fumaça, indicando que ainda estava quente.
“Aquilo parecia tão real...”
As cerejeiras floresceram diversas vezes desde o nascimento do pequeno Ishida, que agora tinha catorze anos. Seus cabelos brancos ainda permaneceram, mas seus olhos dourados haviam sumido após o estranho ritual de seu avô. Se tornaram negros como a noite, perderam aquele brilho que emanavam.
Ele vestia um simples quimono de cor cinza com uma faixa preta na cintura e calçava chinelos de palha. Seus cabelos e pele eram muito brancos, tão brancos como a neve.
Após se alimentar, o jovem abriu a porta de sua casa para encontrar seu avô. Quando estava prestes a fechá-la uma pedra foi lançada em alta velocidade em sua direção, mas ele a segurou no momento em que iria acertar a sua bochecha.
— Maldito! Esse seu reflexo me inveja — A voz de um garoto pôde ser ouvida partindo de alguns arbustos próximos.
Ishida soltou a pedra sobre o chão e fechou a porta.
— Olá, Kotaro.
O garoto pulou de seu esconderijo e, ao pousar, espalhou um pouco de terra entre seus pés descalços.
— Epa !
Bateu as mãos em seu simples quimono marrom para que as folhas grudadas sobre o tecido pudessem sair.
— Bom dia, Ishida! — falou sorrindo, colocando uma das mãos sobre seu preto e finíssimo cabelo redondo — escutei algo muito ruim agora de manhã! Parece que os coletores retornarão.
— Por quê? Já entregamos a quantia que pediram. Passaremos fome se entregarmos o que temos nos campos.
— Vamos perguntar para seu avô! Pode ser que ele saiba de algo, né?
— Sim, vamos. Ele está me esperando nos arrozais.
Os dois seguiram em direção ao centro do vilarejo. Podia-se ver algumas casas feitas de madeira, com luminárias nas pontas dos telhados. Havia também alguns camponeses conversando no caminho, todos com uma expressão de preocupação.
— Ei, Ishida! Hoje meu pai irá me ensinar um pouco sobre a técnica da espada, estou ansioso!
— Sério? Meu avô não quer me ensinar, já pedi muitas vezes até que me cansei. Estou treinando sozinho com um pequeno machado que encontrei na floresta.
— Pode ser que ele tenha medo, devido à proibição do rei, né? Das armas nas mãos de camponeses.
— Talvez, mas sinto ser algo mais profundo. Meu medo é que a vila seja atacada e eu, seja um completo inútil.
— É, mesmo sendo proibido, suponho que ele deveria te ensinar, né? Pelo menos algumas técnicas de defesa.
— Conversarei hoje de noite, tentando apelar para esse lado de caso a vila seja atacada, porém, posso falar ser para defesa pessoal, não falar que quero lutar ou matar algum bandido. — Ishida deu uma leve risada.
— É um belo plano hein! — respondeu Kotaro após rir.
Após chegarem ao centro do vilarejo, avistaram à esquerda uma menina colhendo plantas em uma das casas. Era tão bela! Seus cabelos eram longos e negros como a noite e seus olhos, azuis como o céu. Sua pele era clara, chegava a brilhar diante do sol. Vestia um quimono vermelho com detalhes de flores douradas, preso a uma faixa de cor preta.
— Olha, é a Yumi! — Kotaro apontou o dedo para garota. — Falará com ela, né?
— Não, temos um assunto mais importante agora, não quero desviar o caminho e perder tempo.
— Certo, você tem razão mesmo.
Eles viraram à direita e seguiram, até que chegaram aos arrozais, os quais estendiam-se por vários metros. Havia diversas pessoas trabalhando nos campos. Todas usando chapéus de palha arredondados para se protegerem do sol.
— Não estou vendo o senhor Kenshin — afirmou Kotaro, olhando ao redor com os olhos quase fechados.
— Hum …
Ficaram olhando os campos por alguns segundos.
— Ali — disse Ishida, apontando o dedo.
Kenshin estava bem longe, à direita, atravessando os arrozais. Conversava com um estranho homem que carregava um objeto arredondado em suas costas.
— Nossa! Como você o reconheceu dessa distância?
— Pra mim, está totalmente claro.
— Sua visão me inveja hem — expressou Kotaro, olhando para Ishida.
Os dois seguiram caminhando pela direita.
— Não chove há dois meses, acredito que assustamos os espíritos da colheita.
— O pior é que o inverno está por vir, acabamos de entrar no outono. Se não voltar a chover, estamos ferrados. Não teremos comida o suficiente para aguentar o frio.
— Por que será que eles precisam de mais arroz este ano?
— Alguém pode ter roubado alguma carga, ou algo do tipo.
— Verdade, pode mesmo. Mas mudando de assunto, será que a Yumi já se acostumou com o pessoal? Já faz dois anos que você e seu avô a encontraram, né?
Eles viraram para esquerda e seguiram, cortando os arrozais.
— Ela ajuda bastante nos trabalhos, acredito que esteja gostando daqui.
— Ela anda ajudando aquela senhora que mora fora da vila, a…
— Senhora Myoga?
— Isso! Ela mesmo. Parece que a coitada está doente.
— Fiquei sabendo mesmo. Depois a gente pergunta pra ela sobre.
- OK.
Quando se aproximaram do senhor Kenshin, viram que o homem com quem ele conversava carregava uma bolsa lateral com o símbolo do reino Ezo estampado.
— Essas são as ordens — relatou o estranho, em tom sério.
Ele usava um quimono cinza, junto de um manto preto sobre seus ombros e, em seus pés, sandálias do estilo geta. Seu rosto era escondido por uma máscara tengu e todo seu corpo estava revestido por bandagens, tornando-o uma pessoa misteriosa e de personalidade duvidosa. Por fim, havia algo parecido com um guarda-sol preso em suas costas através de uma haste articulada. O equipamento também poderia ser confundido com um escudo.
— Entendi, daremos um jeito. Diga isto ao rei — declarou Kenshin, após observar os garotos.
O estranho confirmou com a cabeça e seguiu para a estrada de terra que estava a uns 10 metros. Os garotos ficaram observando, então Ishida perguntou:
— Quem era esse homem?
— Era um mensageiro do reino. Ele estava me passando ordens do rei.
Quando o homem chegou na estrada, se agachou e tocou uma das mãos sobre o chão. De repente, pequenos raios exalaram das solas de suas sandálias. Ele olhou para frente e correu pela estrada como se fosse um relâmpago. O som de um trovão pôde ser escutado em todos os cantos do vilarejo.
— Uau! — exclamou Kotaro com uma expressão de espanto.
— Entregaremos todo o nosso arroz? — perguntou Ishida para seu avô.
— Como você já está sabendo?
Kotaro respondeu no lugar de Ishida:
— Fui eu. Escutei um pouco da conversa daquele homem com meu pai de manhã, logo que ele chegou aqui.
— Entendo, vamos reunir o pessoal e decidir o que fazer.
Os três chamaram as pessoas que trabalhavam nos arrozais e partiram para o centro do vilarejo.
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