A terra em que se passa Um Conto do Mar é uma terra fantástica, mas na qual, tal como os aromas que se emanam das páginas e alcançam o leitor − e penso agora nas broas ao rum feitas em uma certa hospedaria de Meradosia −, se permeiam as dores e preconceitos deste nosso mundo.
Do lado de cá, aqueles que, historicamente, detiveram o poder, se definiram como padrão e se colocaram como centro do mundo. O homem branco, heterossexual, europeu e cristão deu a si mesmo o direito absoluto de conquistar, subjugar, julgar e punir segundo seu próprio interesse, silenciando o Outro e qualquer história que o Outro pudesse contar. Qualquer perspectiva desviante dessa que é vista como universal é tida, pois, como um erro. Um “erro” pago com a própria vida, grande parte das vezes.
Eis que em Um conto do mar temos vislumbres de várias histórias, e quem as organiza é Eli, um homem negro e fora do padrão heteronormativo. É também um homem idoso que, no dia em que vai finalizar uma tatuagem que vinha fazendo, decide contar um conto ao tatuador e aos amigos que o acompanhavam. Detalhes importantes: também ele é um tatuador, e também as tatuagens em seu corpo são uma narrativa. Tal como a Helena da Ilíada bordava uma tapeçaria em que se contava uma versão da Guerra de Troia, Eli traz, desenhados em seu corpo, pedaços daquilo que ele viveu. Mais: a sua história é também a história daqueles com quem conviveu e daqueles que tatuou. A tatuagem, então, além de poder ser em si mesma uma arte narrativa, oferece um lugar de privilégio à oralidade: tatuando, ouvem-se as histórias daqueles que se deixam marcar.
“Não se tratava apenas da arte, quando as pessoas entravam na minha sala e se sentavam para a tatuagem, era como um ritual de vulnerabilidade, solidariedade ou qualquer coisa assim, as pessoas apenas compartilhavam.”
A história que Eli conta é uma história de sua juventude, e tem início na época em que ele trabalhava em uma hospedaria do porto de Meradosia como ajudante e, ao mesmo tempo, ganhava seus trocados tatuando aqueles que ali chegavam. Eli tem o apoio e compreensão do hospedeiro e de sua família, mas é, cotidianamente, vítima de racismo por frequentadores do local. As violências sofridas por Eli nos tocam mais ainda à medida em que sabemos que não se tratam de ficção: o racismo é real, é estrutural e mata. Como aponta Eli:
“No fundo, sabíamos da verdade: eu não precisava cometer um erro para ser julgado, bastava estar por perto.”
Quando percebe que será acusado por um crime que cometeu em legítima defesa, Eli precisa deixar a hospedaria às pressas, recebendo ajuda de Tomas, um marinheiro que já o tinha salvo em outra ocasião e o qual ele já tatuara — tendo os dois, inclusive, trocado algumas palavras sobre a viagem em que Tomas estava. Em fuga, é nessa viagem que Eli acaba por se aventurar. Nela, passará por descobertas e experiências que o modificarão para sempre... E descobrirá, com ainda mais intensidade, como tudo o que é considerado diferente incomoda e se torna passível de extermínio; em um mundo repleto de racismo, machismo, xenofobia e LGBTfobia, até as criaturas fantásticas, também “diferentes” do aceitável, se tornam alvo fácil.
A leitura de Um conto do mar vai para muito além do entretenimento; é objeto de reflexão e discussão. É um grito. Permite que alguns leitores leiam a história de Eli se identificando com a sua dor, e que outros possam questionar e repensar o próprio lugar na cadeia de opressão.
Ouvir escritores negros é importante e necessário.
Sentemo-nos e “ouçamos” esta história.
Larissa Fonseca @larissafonsil
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