A vida não lhe deu nenhuma folga, nenhuma brecha.
E talvez por isso Azu soubesse, desde muito jovem, que estava totalmente sozinho.
Foi entregue aos tios quando ainda era muito pequeno. Seus pais não tinham disposição ou vontade suficiente para ter uma criança entrepondo seus planos. Mudou de casa ao menos três vezes, três famílias diferentes. Se compadeciam da história: um menino ignorado pelos pais.
Mas ninguém queria ter tanto trabalho.
Tanto sabia que era um estorvo, aos 16 anos saiu de casa para tentar a vida sozinho. Viver por conta era tão terrivelmente difícil.
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Faltava pouco mais de dez minutos para as sete. A noite estava terrivelmente gelada por conta do inverno, uma garoa fina caía do lado de fora. Vitor observava as gotas escorrerem pelo vidro da janela, sentado na cadeira de assento macio de uma das mesinhas vazias do pequeno estabelecimento.
As coisas não iam muito bem. Sabia que no início o novo negócio demoraria a ter movimento, que era apressado esperar que já tivesse vários clientes frequentando a cafeteria em apenas um mês.
Mas as vendas não estavam fracas demais?
Suspirou. Levantou da cadeira, um amargo sentimento de frustração estava alojado no fundo do peito.
“Eu não devia ter deixado a carreira de corretor, não por algo tão incerto. Se as vendas não aumentarem eu nem vou conseguir pagar as contas esse mês” - pensava, desgostoso. Já começava a arrumar suas coisas para fechar o local.
E então ouviu a sineta da porta tocar, sinal que tinha um cliente de última hora.
Disposto a avisar que estava no fim do expediente, Vitor se vira na direção da pessoa que acabara de entrar.
E ficou em silêncio por um instante.
Um rapaz jovem e magricela estava parado junto à porta, sacudindo os cabelos castanhos, molhados por causa da garoa. Ele vestia camiseta, mesmo que fizesse tanto frio naquela noite. Suas roupas tinham o aspecto de tecido gasto e já sem cor.
Quando ergueu os olhos azuis, cobertos parcialmente pela franja castanha molhada, o coração de Victor falhou uma batida.
“Lindo...” - pensou. Ficou uns segundos admirando o rapaz, pasmo com a beleza angelical dele. Quando o ouviu espirrar em alto e bom som foi tirado de seus devaneios.
- Ah, sinto muito mas já vamos fechar… - tentou explicar ao jovem rapaz que parecia afobado.
- O senhor é o dono desse café?
- Sou, mas como eu disse… - tentou se explicar, sem deixar de notar os braços dele arrepiados de frio, as roupas molhadas que pareciam tão geladas.
Acabou desistindo, apontando uma mesa com a mão.
- Sente onde quiser. Vou te trazer um café.
Imediatamente o rapaz negou, parecendo muito desconcertado.
- Não, não! Eu não vim para isso.
A conversa não fazia muito sentido. Por que alguém entra em uma cafeteria se não é para tomar um café? Ainda mais alguém que está literalmente tremendo de frio?
O rapaz parecia desconcertado, como quem não faz ideia de como começar uma conversa. Seu rosto estava ficando vermelho.
Sem entender, Vitor lhe pergunta:
- Então em que eu posso te ajudar?
O olhar dele finalmente se tornou fixo.
- … Por favor me deixe trabalhar aqui.
O mais velho piscou. Duas vezes.
Logo bufou pelo nariz, coçando atrás da nuca.
Era o que lhe faltava! Os negócios iam mal, não tinha dinheiro e tampouco clientes! Era provável que tivesse de fechar as portas e o garoto vinha lhe pedir emprego!
Tentou soar natural para não xingá-lo como gostaria.
- Não estamos contratando, desculpe por isso. E sinto informar que está na hora de fechar.
- Eu posso fazer qualquer coisa. Limpeza, lavar as louças, banheiros, o que precisar.
- Mas essa é questão! Eu NÃO preciso de ajuda por aqui, entende?
Esperava que com isso ele fosse entender.
Mas, o olhar dele era uma mescla de desespero e ansiedade, a tal ponto que não dava para entender o que ele queria afinal.
“Qualé a desse garoto? Será que é drogado? Para vir aqui maltrapilho, numa noite de frio, só falta tentar me assaltar. Eu não tenho nem dez reais na carteira e quase não tem nada na dispensa. Péssimo dia para ser visitado por um zé droguinha!” - pensou, e a carranca em seu rosto era evidente. Segurou no ombro do rapaz e o virou em direção à saída.
- Se me der licença, eu preciso fechar a loja agora.
- Espere! Eu preciso muito desse emprego.
- Mas não vai encontrar nada aqui! Vá encher outra pessoa!
O empurrou até o lado de fora, mas antes que conseguisse fechar a porta da cafeteria o jovem segura seu pulso, e força o corpo contra a porta, impedindo-a de bater.
- Por favor!
- É a última vez que eu…
- Só me dê um prato de comida, por favor - se havia um resto de dignidade que ele tentava manter tudo ruiu naquele instante, agarrado ao braço do homem mais velho.
Vitor parou de forçar a porta, ainda desconfiado.
- Como é?
Ele olhou para os lados, sem graça de encará-lo. Os olhos pareciam nublados e foscos, o rosto quente e vermelho.
- Faz dois dias que não como nada, senhor. Não tenho dinheiro, e não quero fazer nada de errado. Qualquer coisa está bom, mesmo se for algo que pretende jogar fora, eu não me importo. E farei o que me pedir em troca, para pagar por isso.
A mão que segurava o pulso de Vitor tremeu. Pelo rosto bonito e angelical grossas lágrimas escorreram nas bochechas e ele rapidamente tentava enxugá-las, com vergonha de si mesmo.
Normalmente Vitor desconfiava até de sua própria sombra. Mas se havia algo que ele jamais negaria era um prato de comida.
Olhou para baixo, sem desfazer a carranca. Por fim soltou o ar pesadamente pelo nariz.
- Me espere aqui. E se fizer alguma coisa de errado eu mesmo venho e te parto em dois, você entendeu?
Os olhos dele brilharam, o azul se tornando vívido novamente.
- Obrigado! - segurou-lhe a mão - Obrigado!
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“Hm, morrendo de fome o caramba. No mínimo quer comida de graça, mas eu não teria coragem de dizer não. Sou um estúpido” - o homem resmungava para si mesmo conforme saía da cozinha, trazendo consigo um prato com dois pães de batata requentados, recheados com calabresa e queijo cremoso. Percebeu o rapaz sentado no mesmo lugar em que o deixou.
Colocou o prato diante dele com um movimento meio rude.
- Aí - disse sem muita convicção, porque em sua cabeça ainda iria se arrepender por ajudar um desconhecido.
O sentimento, porém, mudou no instante seguinte. Isso porque o rapaz agarrou o pão mordendo mais do que era capaz de mastigar e engolindo tão depressa quanto podia, a ponto de praticamente engasgar.
Um nó se formou na garganta de Vitor.
Uma pessoa não finge que está com fome. Era nítido que o rapaz dizia a verdade.
Sentiu-se mal por duvidar. Sem dizer nada foi até a cozinha, trazendo consigo um copo de suco e restos de hortaliças que usava para fazer as pequenas saladas que servia como acompanhamento. Olhou de relance sobre sua bancada de serviço e percebeu algo que não havia conseguido vender ainda. Decidiu levá-lo também.
Voltou à mesa e assistiu o garoto comer absolutamente tudo que foi posto diante dele. Não o interrompeu, era prazeroso ver alguém comer sua comida com tanto gosto.
Esperou ele terminar de comer e beber ,e então estendeu uma caixinha transparente.
- Isso é um choux de creme. Acho que é meu doce preferido mas ninguém nunca pediu um aqui. Isso é meio frustrante, sabe?
Ele ouviu e já mais calmo, abriu a caixa de plástico. Mordeu e provou o bolinho doce. Os olhos chegaram a marejar.
- ... É provavelmente a coisa mais gostosa que já comi.
- Nem exagere. Qualquer um faz um desses.
- É diferente quando se come de alguém que gosta do que faz. A comida tem um sabor muito melhor.
Ao ouvir isso, Vitor ficou sério, fitando com curiosidade enquanto ele mastigava.
- Qual seu nome, moleque?
- Azu.
- Quantos anos você tem?
- Dezenove, senhor.
- Mirrado desse jeito? Achei que fosse menor de idade!
Azu não respondeu. Juntou os pratos e os empilhou. Ergueu o corpo, disposto a seguir para a cozinha e lavar. Vitor o impediu.
- Deixa isso, eu limpo.
- É só o que posso fazer para pagar...
- Por essas sobras? Não me ofenda, garoto. Você ainda não comeu comida boa de verdade. Vai ter chance pra isso amanhã.
- Azu não estava entendendo.
- Amanhã?
- Quer um emprego, não é? Pode começar distribuindo uns panfletos. Você é bem bonito, talvez consiga atrair gente jovem pra cá.
- É sério isso? Eu posso mesmo? - um sorriso radiante estampou o rosto bonito e corado de Azu - Obrigado, senhor!
- Só Vitor está de bom tamanho - desviou o olhar, ranzinza.
Daquele dia em diante Azu passou a trabalhar na cafeteria. A princípio fazendo coisas simples, pequenas ajudas. Recebia um salário baixo, mas que o ajudava a se manter. Conforme o local foi enchendo, a clientela chegando, Azu foi se apaixonando pela cozinha e encontrando sua real vocação. Nunca esqueceu do dia em que entrou por aquela porta, disposto a desistir de absolutamente tudo, e encontrou forças para seguir adiante.
Para Azu, família não necessariamente era quem tinha o mesmo sangue. Não importava quantas pessoas o tivessem rejeitado, havia uma que o acolheu e reconheceu seu valor.
A família de Azu passou a ser unicamente Vitor.
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