Ao chegar na academia educacional, Gabriel consegue usar o ocorrido para
se justificar e pedir desculpas pelo atraso. Ordenado a se sentar, lembra que é
dia de exame de raciocínio lógico e que esquecera de estudar enquanto fazia a
viagem no trem.
O estudante sentado à frente se vira, lhe entregando as folhas da prova e o
comunicado da semana.
― Ruan, o Hugo ainda não chegou para fazer a prova?
― Você não ficou sabendo, Gabriel? Os lobos pegaram o Hugo ontem à noite,
assim que chegava da escola.
― O quê?
― O diretor ordenou que os guardas esvaziassem tudo que era dele, armário
e carteira. Esse espaço ao seu lado ficará vazio. Querem levar até a cadeira dele
para higienização. Aparentemente ele estava envenenado, portando níveis
elevados de MG.N.8 na circulação sanguínea.
― Mentira! ― Gabriel pensa.
― Eu o vi tomando suas doses diárias do
Bluebird a semana inteira.
― Ouvi boatos de que ele não foi enviado para o exílio no Vale das Ruínas.
Saíram informes que dizem que ele resistiu e fugiu.
Gabriel recua e se assusta com tudo que acaba de ouvir.
― Há uma ordem de abate caso ele seja avistado e continue resistindo.
― Isso só pode ser mais uma mentira.
Gabriel continua de cabeça baixa ouvindo e pensando.
― Não há como um jovem sozinho encarar soldados altamente armados e
preparados. No pior dos casos, é possível que ele já tenha sido morto e usem
essa história de fuga para justificar o assassinato e aparecerem com o corpo.
Ele não quer mais ouvir o que seu colega de sala fala, acena com a cabeça,
sinalizando que entendeu, e finge querer se concentrar em seu exame. Ao ser
deixado quieto, Gabriel lembra de que presenciou os momentos em que Hugo
tomava as doses diárias da droga.
― Se ele as tomava, como ficou envenenado tão rápido? Por que essa
agilidade da Alcateia em querer condená-lo e matá-lo?
Seus pensamentos aceleram, a boca fica seca e imóvel, o rosto inexpressivo,
algo mudara. Gabriel sente um leve tremor nas mãos e disfarça colocando-as
dentro da mochila, como se estivesse pegando algo dentro.
Ao piscar, vê em si manchas secas e gotas de sangue. Pisca de novo e nada,
o uniforme está impecavelmente limpo. Olha para os lados, pisca mais uma vez
e vê agora suas mãos e pés sujos de muito sangue, fecha os olhos com toda a
força e ao abrir percebe que, novamente, não há nada.
Após a prova, a aula inicia e as horas passam.
Uma turma inteiramente inexpressiva assiste a uma aula de história do mundo
e ouve uma distorcida versão sobre os feitos da Alcateia e suas ações para
reerguerem a civilização. O professor apresenta imagens e vídeos da Grande Guerra Civil que aconteceu no antigo mundo, à época dos grandes cataclismos
ambientais. No material de leitura fornecido pela academia educacional é
possível ler que essa guerra foi além do confronto físico de diferentes povos. Foi
a guerra das ideologias, do combate ao medo gerado pelo diferente, da posição
de poder balançada e abalada em sua frágil estrutura.
A Grande Guerra Civil não foi o caos pior, mas o sintoma de algo maior,
que debilitava a humanidade. Lutas ocorreram dentro da mente de cada pessoa.
Seres humanos armados se aprisionavam miseravelmente, deixavam de lado o
debate e embate das palavras, optando por calar para todo o sempre qualquer
voz opositora. Líderes e governos tombaram definitivamente.
O estilo de vida e de governo do antigo mundo fora quebrado. O ar poluído
e envenenado se espalhava e alcançava diferentes povos e nações. MG.N.8, um
veneno desconhecido, se alastrou e matou muitos, deixando mais mortes e
sequelas físicas que se tornavam o mais novo inimigo da humanidade. O meio
ambiente, como era conhecido, entrou em colapso e extinção. As antigas
moedas, objeto de inveja para a riqueza das nações, tornaram-se apenas papel
incinerado poluindo toda a atmosfera. O que se conhecia por população mundial
foi reduzido a apenas quarenta e cinco por cento do seu antigo contingente.
Demorou até que a humanidade conseguisse reagir e se recuperar das perdas.
Novas pessoas ascenderam, na liderança de novos grupos para guiar os
humanos à sobrevivência.
Ainda não se sabe a origem do veneno, estudiosos especulam que tenha
relação com as algas dos oceanos mortos que deixaram as águas do mundo
totalmente magenta escuro. Tempos após a morte de milhares de pessoas em
decorrência da poluição do ar, testes de remédios foram desenvolvidos com o
intuito de conter o avanço do MG.N.8 no organismo.
A aula ministrada gira toda em torno da tragédia do passado, do antigo
mundo antes do calendário vermelho. Aula dada como trampolim para que
novamente voltem a falar das ações da Alcateia como se fossem grandes feitos
heroicos.
Gabriel alcançou um estado de preocupação em que não consegue absorver
mais nada. Há horas, em sua mente, está revivendo a cena do assassinato no trem. O professor abre a boca para falar e, no lugar, Gabriel escuta a discussão
do jovem com o lobo no vagão.
Os sons de tiro nos registros audiovisuais da Alcateia o transportam para o
confronto de mais cedo. Ele agora vê toda a turma ao seu redor com máscaras
de lobo e pés sujos de sangue. Enquanto o hino de Nova São Paulo do Sul toca
no encerramento do vídeo, Gabriel só consegue ouvir os gritos do jovem sendo
morto no vagão do trem.
Gabriel seguia rumo a mais um dia rotineiro de sua vida, até que sofre o impacto da informação de que o seu namorado Hugo está foragido e é caçado por toda Nova São Paulo do Sul, uma nação que nasceu das cinzas do cataclismo ambiental e que se tornou lar hostil para ele e milhares de civis. Como se não bastasse lidar com o ar envenenado, a dependência coletiva de drogas e a violência extrema da alcateia, os dois jovens são envolvidos em uma avalanche de situações que abalam todas as esferas de poder da nação e revelam segredos obscuros que colocam em risco a vida de toda a população.
Como ambos serão capazes de escapar da ditadura em que vivem, e de obter poder suficiente, para confrontar a realidade perversa a que estão submetidos diariamente?
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