Mesmo sem notícias a respeito do desaparecimento de Hugo, a rotina de
Gabriel volta a ocorrer com alguma constância. Tem levantado, mesmo com
insônia, todas as manhãs e encarado a verdade que é saber que, ao cruzar a
porta da sala de aula, a mesa de Hugo não estará lá. No canto da sua mesa do
quarto, há pilhas de livros e papéis de trabalho acumulados por não conseguir
se concentrar.
Ele já deveria ter entregado uma resenha do livro “O peso do capital da nova
nação”, os esboços e tentativas de escrita não passaram dos três primeiros
parágrafos. Gabriel sabe que será cobrado, mas no momento não há paciência
para ler as desculpas que a Alcateia publica para se livrar da culpa por
preconceitos e racismos institucionalizados. As histórias contadas são sempre
as mesmas. Por trás do monopólio da busca da cura, novos líderes fincaram o
estandarte de seu poder.
O antigo mapa do mundo já não existia, novas nações surgiram, como a Águia
Socialista do Norte, Reino Liberal da Amazônia, Nova São Paulo do Sul, Império
Urso do Mediterrâneo e a Nação Baleia das Ilhas do Anel de Fogo. Logo a
justificativa de higienização para combater a poluição e envenenamento das
pessoas mascarou os motivos reais para que muitas pessoas fossem
condenadas ao exílio e à espera da morte.
Durante todas as manhãs, único momento que compartilha com alguém
dentro de casa, Gabriel tenta se alimentar enquanto que seu pai se prepara para
o trabalho, se veste e arruma a bolsa que carrega consigo, ao mesmo tempo em
que assiste a única transmissão de televisão permitida pela Alcateia. Seu pai,
um ocupado e depressivo homem que trabalha como diplomata, deveria ser a
pessoa mais próxima para notar as mudanças em Gabriel. Ele não enxerga as
noites de insônia, a falta de apetite do filho e as recorrentes faltas de Gabriel à
academia.
Talvez ele não perceba, pois também vive um quadro de apatia e depressão
constante desde que se tornou viúvo. A única distração que mantém sua mente
ocupada é a rotina de trabalho e constantes reuniões para a Alcateia. Para Gabriel, foi esse ritmo de vida de seu pai que fez sua família ascender
economicamente e não se tornar mais um lar à mercê da pobreza, mas também
foi a ruína das relações em sua casa. Sua mãe já está morta e quando o seu pai
tenta conversar com ele, sempre dirige a conversa para assuntos a respeito de
desempenho e cobranças futuras. Ele não diz, mas Gabriel sente que há uma
expectativa de que seus passos sejam seguidos, como diplomata.
Eles se despedem com palavras quase inaudíveis. Pelas roupas que está
usando para sair de casa, provavelmente será um dia de trabalhos internos, em
que não precisará passar a noite fora de casa, uma situação recorrente em seu
trabalho, e que tem sido mais frequente desde o falecimento de sua mãe.
Gabriel se despede com os olhos atentos ao que o pai assistia, ao mesmo
tempo em que despeja um líquido de tonalidade e textura arenosa dentro de uma
tigela e mistura com bolachas para comer, quebrando assim o jejum de alguns
dias. Os blocos noticiários das palavras de ordem soam redundantes ao mostrar
cenas do passado com pessoas mortas, violência e pobreza. Como se
desejassem admoestar a população, ao lembrar do que aconteceu com a
humanidade e em que posição estão atualmente.
Além de ser exibido na televisão, pela janela é possível enxergar, projetado
no céu por meio de hologramas instalados entre algumas torres de vigia, o
esboço da imagem na transmissão. Apesar de constante, quase nada exibido
serve para informar aos cidadãos de Nova São Paulo do Sul a respeito de tudo
o que acontece no próprio território.
Gabriel nunca fora de notar a discrepância entre dados e informações
transmitidos e omitidos nos informes. Antes de conhecer Hugo, acreditava nos
valores que ouvia o seu pai pregar. Enquanto a nação prosperasse e lhe
mantivesse seguro da poluição, ele deveria viver conformado, era esse o rumo
que a vida deve seguir.
No passado ele não se questionava a respeito de como a humanidade vivera
antes do calendário vermelho, da produção da Bluebird e da consolidação das
grandes nações do novo mundo. Agora Gabriel trava uma luta interna de valores,
desde a morte no trem e a notícia do envenenamento de Hugo. Ele não tem
dividido isso com ninguém, mas dobrou por conta própria as doses de Bluebird que deveria tomar diariamente. A droga que passou a rejeitar quando estava ao
lado de Hugo, agora é uma válvula de escape da existência. Não consegue lidar
com o que sente estando sóbrio, tem medo de que, brevemente aconteça
consigo o mesmo que com Hugo.
Independente de ser morador da Colmeia, privilegiado por ter um teto na
Cidade Modelo ou se faz parte dos assentamentos de mineiros e operários
industriais no Pantanal Perdido; respirar o ar de Nova São Paulo do Sul é um
contrato de morte. Gabriel teme ter adiantado a data de vencimento desse
contrato quando recusou a medicação, tempos atrás. Sente curtas e intensas
dores abdominais, como se lhe atingissem em intervalos de tempo. Tremores
nas mãos e pernas se tornaram recorrentes nos momentos em que o efeito da
medicação é cortado. A automedicação elevada trouxe Gabriel ao local onde
está. Desembarcando do trem que saiu da Cidade Modelo rumo a esse novo
destino.
Gabriel seguia rumo a mais um dia rotineiro de sua vida, até que sofre o impacto da informação de que o seu namorado Hugo está foragido e é caçado por toda Nova São Paulo do Sul, uma nação que nasceu das cinzas do cataclismo ambiental e que se tornou lar hostil para ele e milhares de civis. Como se não bastasse lidar com o ar envenenado, a dependência coletiva de drogas e a violência extrema da alcateia, os dois jovens são envolvidos em uma avalanche de situações que abalam todas as esferas de poder da nação e revelam segredos obscuros que colocam em risco a vida de toda a população.
Como ambos serão capazes de escapar da ditadura em que vivem, e de obter poder suficiente, para confrontar a realidade perversa a que estão submetidos diariamente?
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