A fumaça quente sobe e é dissipada rapidamente ao misturar-se com o sopro
de Hugo, que segura uma grande e danificada tigela contendo o que parece ser
uma mistura de mingau.
― Quando eu vou poder comer alguma comida sólida, pelo menos?
― A comida que te damos tem lhe feito mal?
Henrico está sentado ao lado da cama velha onde Hugo está recostado, em
posição de repouso. O quarto em que Hugo tem passado os dias se recuperando
lembra um dormitório, repleto de colchões velhos acumulados e um cheiro de
ácaro bem presente em quase todos os lençóis, cama e tecidos que tem usado
para se vestir. Ele acredita que aquele cômodo não fora usado até sua chegada.
É nítida a tentativa de arrumação feita às pressas para que ficasse ali desde que
passou a ter condições de sair da maca.
― De acordo com a minha interpretação dos seus níveis metabólicos, essa
refeição tem contribuído positivamente para a sua melhora.
― Se ela ao menos fosse mais bonita, talvez melhorasse o meu humor.
Henrico permanece quieto por tempo suficiente para que Hugo percebesse
que o que acabara de dizer fora indelicado. Com um gesto brusco para suas
condições, ele toma todo o restante da tigela como se bebesse água.
― Ahh! Desce quente pela garganta. Cara, me desculpe, eu não tive a
intenção de dizer da maneira como soou agora pouco.
― Eu sei que não, Hugo, estranhamento é uma reação previsível quando você
está diante de algo além do que sua vida costuma lidar.
― Agora você puxou a minha orelha. Na Colmeia a gente também lida com
muitas situações que não são bacanas.
― Hugo, você agora está no Vale das Ruínas. Tratando-se de um jovem
nascido no Norte, você nasceu com um privilégio de poder escolher o que comer,
isso é bastante diferente da vida de quem nasce aqui.
― Eu achava que só viviam aqui presos e exilados.
― Talvez fosse assim no início, mas, mesmo na adversidade, há pessoas que
não desistem de continuar vivendo. É normal que elas se esforcem para levar uma vida o mais próximo possível das suas experiências do passado, por isso
uma imensa comunidade conseguiu surgir.
― Nascem crianças aqui?
― Sim, muitas delas morreram sem chegar à adolescência ou conhecer o
mundo além desses muros e cercas. Essa comida simples é algo que custa caro
por aqui e é um ótimo exemplo do que o seu corpo realmente precisa, comparado
ao que o seu psicológico projeta como desejo. Vocês do Norte colocam um preço
no ato de comer, pegam alguns dos mesmos ingredientes que usei para fazer
esse mingau e “enfeitam-no” antes de se alimentarem. É a mesma comida,
apenas custa mais caro e não chega a todos que precisam. A humanidade nunca
soube lidar com comida, Hugo.
― É uma perspectiva que nem todos viveram para saber, Henrico. Você
também come?
― Eu nunca precisei.
Henrico levanta seu corpo pesado e que, sem esforço, produz um som
mecanizado na cadeira em que sentava ao lado de Hugo para recolher a bandeja
e louça dele.
― Obrigado. Parece que o doutor Eric não é o único estudioso por aqui.
― Sei falar somente de assuntos que meu pai instalou em meu sistema
operacional.
― O doutor é um homem sábio, só espero que ele seja sábio o suficiente para
me dar alta logo.
Enquanto Hugo se ajeita na cama, Henrico sobe os degraus de um dos
beliches abandonados no quarto, para alcançar uma pequena fresta de janela
superior, com um pedaço de vidro rachado, e então observar o ambiente do lado
de fora. Desse espaço, uma fraca e pequena faixa de luz natural adentra o quarto
onde estão.
― O que está acontecendo aí fora?
― A rotina de sempre, pessoas vagando, infratores entrando em crise e muita
sujeira, Hugo.
― É triste e injusto o que acontece com essas pessoas.
― Hugo, se a justiça anda junto da verdade, por que então há injustiça na
verdade que essas pessoas vivem?
― Eu não sei, essa é uma dúvida que talvez nem seu pai saiba responder,
Rico.
Afastando-se do pequeno espaço de vidro, Henrico cobre a única fração de
luz e conexão dali com o ambiente externo.
― Henrico, quando você acha que estarei melhor para partir?
― Melhor para se locomover? Logo, mas você não irá voltar.
― Que merda é essa que você está falando? Isso é uma ameaça, um
sequestro que eu não sei?
― Hugo, para a Alcateia ter jogado você aqui no Vale das Ruínas, significa
que eles têm você como alguém morto, esquecido. Não tem como voltar e
recuperar sua vida.
― Do que você está falando? Eu tenho que dar um jeito de voltar, a minha
família precisa saber que eu estou bem.
― Assim como o meu pai, você já foi dado como morto para a Alcateia. Você
foi exilado para ser mais um naquilo que vocês do norte chamam de “mar de
infratores”.
― Você está tentando me convencer de que eu devo ficar aqui até morrer
envenenado sem acesso a cuidados?
Hugo se move na cama de forma bruta, como se quisesse sair do local no
mesmo instante, porém hesita. Henrico, ao se aproximar, oferece o braço como
apoio.
― Fazer movimentos bruscos podem doer com mais facilidade e comprometer
os pontos, se apoie em mim, Hugo.
Mesmo sentindo a temperatura gelada do metal, ele segura firme no braço
mecânico e levanta devagar da cama. Com o outro braço livre, Henrico entrega
para Hugo uma larga bata para vestir-se e cobrir as cicatrizes expostas em seu
peito nu.
― Você não vai ficar aqui até morrer, Hugo, apenas deve ficar tempo
suficiente para que meu pai consiga dar início a algo maior que planejamos.
― Algo maior?
― Já que você sente medo de estar aqui e saudades de onde vive, é melhor
irmos até o meu pai e te explicará o que quer saber. A propósito, você não vai
morrer envenenado, porque estamos descobrindo juntos, meu pai e eu,
enquanto você está aqui conosco. De alguma forma, você tem a cura dentro de
si, Hugo.
Enquanto os dois deixam o quarto de repouso que Hugo ocupa há dias, não
houve mais palavras ditas entre ambos. Hugo apenas sente o coração bater
aceleradamente. Suas batidas entram em um ritmo, acompanhadas do som das
pisadas fortes de Henrico pelo caminho.
Gabriel seguia rumo a mais um dia rotineiro de sua vida, até que sofre o impacto da informação de que o seu namorado Hugo está foragido e é caçado por toda Nova São Paulo do Sul, uma nação que nasceu das cinzas do cataclismo ambiental e que se tornou lar hostil para ele e milhares de civis. Como se não bastasse lidar com o ar envenenado, a dependência coletiva de drogas e a violência extrema da alcateia, os dois jovens são envolvidos em uma avalanche de situações que abalam todas as esferas de poder da nação e revelam segredos obscuros que colocam em risco a vida de toda a população.
Como ambos serão capazes de escapar da ditadura em que vivem, e de obter poder suficiente, para confrontar a realidade perversa a que estão submetidos diariamente?
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