― Nono relatório do experimento 187, aqui é o doutor Eric Lopes falando. O
paciente vem apresentando sinais de melhora a cada dia, seus exames de
sangue e níveis metabólicos já apresentam índices de noventa e dois por cento
de desintoxicação dos componentes químicos residuais da droga Bluebird. O
sangue do paciente apresenta pigmentação vermelha esperada devido à
ausência de consumo da droga e, mesmo em ambiente fechado e sem presença
abundante de luz solar desde que chegou, a pele do paciente está com boa
tonalidade, assim como há uma melhora nos reflexos, raciocínio lógico e
eloquência da fala. Taxas relacionadas à presença do veneno MG.N.8 indicam
que, apesar de presente em sua corrente sanguínea, não apresenta risco a
saúde do paciente. Estima-se que, até o próximo relatório, o veneno torne-se
não detectável nem seu organismo. Os ferimentos decorrentes das agressões
apresentam boa cicatrização e ausência de infecção. Sigo sem respostas quanto
ao motivo pelo qual apenas nesse paciente minha medicação teste tem surtido
efeito. Talvez, analisando a história pregressa do paciente e os relatórios dos
experimentos falhos, eu preencha as lacunas que faltam para um relatório
completo.
Após dizer isto ao gravador, Eric solta o dedo que pressionava o botão do
aparelho. Enquanto encara a tela do computador em que digita o relatório, ele
encosta a coluna na cadeira, inspira e expira alto, como se o seu corpo
precisasse disso há muito tempo.
Os únicos sons emitidos na sala mal iluminada são os da respiração do doutor,
de um ventilador de teto e uma cafeteira, muito antigos e que aparentemente
foram concertados. O cheiro do café químico exala pela sala, se misturando ao
odor de pilhas de papéis amarelados, umidade e infiltração das paredes.
Eric desvia os olhos da tela do computador e os direciona a um antigo HD. Ao
conectá-lo, surgem na tela dezenas de pastas numeradas. Abrindo uma por uma,
ele acessa todos os antigos relatórios.
Dentro da sala, as horas passam de maneira que, sem a iluminação natural,
se torna difícil calcular o tempo.
― Chega!
Apoiado em sua bengala, caminha até a entrada e aciona um aparelho
comunicador próximo ao batente.
― Henrico, pode me ouvir? Por favor, traga o jovem aqui para a minha sala
após ele acordar e se alimentar.
A goteira da antiga cafeteira compassa os segundos e minutos de espera que
são rompidos somente com os sons dos passos pesados e demorados de
Henrico e Hugo chegando.
― Você parece melhor a cada dia que passa.
― Boa tarde, doutor, eu acho. Já perdi a noção das horas neste lugar.
― Hoje faz exatamente um mês desde que meu filho o trouxe. Posso garantir
que há maneiras de não ficar perdido no tempo e nem dentro de sua mente,
mesmo cercado por essas paredes.
― Doutor, Henrico disse que eu não posso voltar para casa. Isso é verdade?
Eric olha para Henrico e este, ao entender o olhar do doutor, acena com a
cabeça em um movimento de afirmação saindo da sala e deixando a porta
entreaberta.
― Eu prefiro que, no momento, Henrico, fique de fora e vá conferir os acessos
e entradas para garantir nossa segurança aqui dentro.
― Eu estou pouco me fodendo para esse lugar, apenas quero saber de fato o
que está acontecendo.
A cadeira diante do computador é arrastada pelo braço livre de Eric até ficar
próxima de Hugo.
― Assim que você estiver devidamente sentado, poderemos levar o tempo
que quiser aqui.
Eric desliga o monitor de seu computador, abre espaço em sua mesa entre
muitos papéis e peças de eletrônicos velhos. Ele retira de um dos bolsos de seu
jaleco um pacote que Hugo reconhece logo: cigarros. Após acender um e dar
uma tragada forte, imediatamente o apaga.
― Oh, me desculpe, Hugo, eu estava tão ansioso para fumar um desses que
nem percebi que você ainda está convalescendo. Henrico não pode me ver fumando, ele acredita que eu parei, mas é difícil aguentar essa vida aqui isolado
se eu não tiver um desses.
― O que fez você vir parar aqui neste lugar, doutor, é algum tipo de laboratório
da Alcateia?
Hugo não perde tempo ao iniciar as perguntas em um tom de voz efusivo.
― Aqui é um extinto laboratório da Alcateia.
― Eu sabia que havia algo de errado nisso. Vocês não cansam de me torturar?
― Não precisa aumentar o tom de voz, Hugo, se acalme, não somos da
Alcateia. Como eu disse, sim, estamos em um laboratório deles, porém
desativado. Não consta mais nos registros do Centro Operacional a existência
deste local. Em todo o Vale das Ruínas, aqui é um dos últimos lugares em que
eles procurariam sinal de vida.
― Então você não faz parte deles?
― Eu fiz, no passado. Esse lugar funciona apenas porque, desde quando
Henrico e eu nos abrigamos aqui, viemos cobrindo nossos rastros. Graças
somente a ele fomos salvos e estamos seguros. Eu e você.
Hugo se vira para a direção da porta entreaberta. Nota um barulho muito sutil,
porém audível, vindo do lado de fora, sons semelhantes aos que ele ouvira de
vozes moduladas nos momentos em que Henrico fala.
Aparentemente o próprio sistema operacional e a funcionalidade dele não são
totalmente livres de ruídos. Mesmo não falando nada, os ruídos vindos de
Henrico soam como se pudesse se comunicar em outros idiomas e linguagem
única. Hugo se intimida com o próprio pensamento de que, se Henrico fosse uma
pessoa, todos esses sons e vozes estariam constantemente ecoando dentro de
sua mente. Ele não consegue imaginar como deve ser conviver com esses sons
diariamente fazendo parte de si próprio.
― O que é ele?
― Henrico é o meu filho, já te disse. Realmente é a respeito dele que você
quer perguntar, Hugo? Por acaso você é algum infiltrado da Alcateia que eu
ingenuamente acolhi?
― Claro que não! Odeio eles.
― É compreensível você odiar. Eles ameaçam, caçam, torturam e matam em
nome da ordem limpa deles.
― Porque eu tenho a sensação constante de que ninguém faz nada para
mudar tudo isso?
― Meu jovem, você acha que eles são os primeiros líderes a subjugar o seu
povo? Realmente, nas escolas de Nova São Paulo do Sul você não terá acesso
à aulas dignas de história.
Hugo deixa para trás a feição de irritação iminente e aparenta mais calma e
concentração sobre como essa conversa se desenrola.
― O poder e desejo de controle sempre existiu, Hugo. Desde antigas
histórias, a origem real dos meios pelos quais o poder é dado a alguém pode ser
obscurecida. São poucos os indivíduos permitidos a permanecerem vivos diante
da verdadeira luz do esclarecimento. Você acredita que mudanças permanentes
podem acontecer? Mudanças já aconteceram no passado, porém todas elas
serviram apenas para trocar as posições de domínio.
― O senhor está falando bastante sobre poder, mas não está me explicando
o que eu tenho a ver com isso.
― Muitas desgraças históricas estão relacionadas ao poder, meu jovem. A
população confunde controle com liderança e acredita que o IV Líder Alfa está
cuidando deles. Esse poder de controlar a vida dos menos privilegiados nunca
deixou de existir, Hugo, apenas está mascarado, diluído na lábia desses lobos.
É diante desse cenário que nós vamos agir.
― Como assim nós? O que você quer dizer com isso?
― Nós temos o que é preciso para derrubar o IV Líder Alfa e toda a sua
Alcateia, Hugo.
Gabriel seguia rumo a mais um dia rotineiro de sua vida, até que sofre o impacto da informação de que o seu namorado Hugo está foragido e é caçado por toda Nova São Paulo do Sul, uma nação que nasceu das cinzas do cataclismo ambiental e que se tornou lar hostil para ele e milhares de civis. Como se não bastasse lidar com o ar envenenado, a dependência coletiva de drogas e a violência extrema da alcateia, os dois jovens são envolvidos em uma avalanche de situações que abalam todas as esferas de poder da nação e revelam segredos obscuros que colocam em risco a vida de toda a população.
Como ambos serão capazes de escapar da ditadura em que vivem, e de obter poder suficiente, para confrontar a realidade perversa a que estão submetidos diariamente?
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