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Fatalismo - Livro Um - A Era Dos Lobos

Capítulo 08

Capítulo 08

Feb 08, 2023

Passos apressados adentram o banheiro frio. As paredes do espaço são revestidas com azulejos de tom branco, semelhante à neve, lisas e trabalhadas com sancas de gesso. O investimento suntuoso para manter o status da instituição de ensino em quase todo metro quadrado do prédio da academia.

Hugo apoia sua mochila no chão, próximo à pia enquanto anda até o mictório. Sozinho e de pé, ele assobia uma melodia que reverbera alto naquele ambiente gelado e fechado. Começa a cantar baixo, intercalando as palavras com as notas da melodia até que a porta se abre e, assustado, Hugo interrompe o último assobio. Percebe que quem entra é o aluno transferido que vive na Cidade Modelo.

Pela expressão, ele ouviu Hugo, mas apenas acena com a cabeça e caminha até o mictório ao lado.

― Bom dia.
― Bom dia.

Parados diante da parede, sobre eles um silêncio constrangedor se faz presente.

― Você é o aluno transferido que mora na Cidade Modelo? Seja bem-vindo, meu nome é Hugo.
― Sim. Prazer, Hugo, meu nome é Gabriel.

Ambos olham um para o outro, tímidos, e logo voltam a encarar a parede. Alguns segundos de silêncio continuam até que Gabriel olha para Hugo.

― Você terá aula de dever cívico após o intervalo?
― Eu ainda não memorizei bem os meus horários, mas acho que é essa aula sim. Você está nessa turma também? ― Sim, estou.
― Ah, que bom! Quero dizer, que bom que estamos na mesma aula. Não que a aula seja boa.

Hugo inspirou fortemente e se voltou para a parede.

― Eu entendi.

Apesar das curtas palavras, Gabriel rompe a seriedade de suas feições e sorri. Ambos voltam a olhar para baixo, deixando de se encarar.

― O que você estava assobiando? Era diferente das músicas que o batalhão de ordem faz a gente cantar nos eventos em homenagem à Alcateia, lá na Cidade Modelo.
― Aquilo? Foi só uma música que tive a chance de ouvir na minha região, a Colmeia.
― Lá também fazem eventos iguais aos da Cidade Modelo?
― Não. Quando eu era criança e ainda muito novo para estudar na academia, minha mãe tinha o hábito de me deixar sob os cuidados de uma vizinha enquanto trabalhava. Eu lembro o nome dessa senhora até hoje, a chamava de vó Caetana. Era ela quem costumava cantar essa música para mim.
― Eu não entendi muito bem as palavras que você cantou, são de outro idioma?
― Sim. A vó costumava dizer que essa música é de um tempo em que não existia a grande nação e que pertencia aos seus antepassados, à sua terra natal. Ela também me ensinou que eu nunca deveria cantá-la na frente de outras pessoas.
― Por que?
― Na época ela dizia que o lobo mau pegava as crianças que cantavam essa música. Eu, por medo, obedecia. Somente quando fiquei mais velho é que pude entender o que ela queria dizer.

Nesse instante, Hugo desvia do olhar de Gabriel. Encarando a sombra na parede diante dele próprio, continua.

― Muita gente de onde ela veio sofreu por conta da sua fé e crenças. É assim com muitas famílias da Colmeia, passaram a viver com vergonha de suas crenças e, hoje em dia, muitos dos filhos dessas pessoas sequer conhecem mais suas origens.
― Eu gostei dela e prometo não dizer a ninguém o que ouvi.
― Obrigado.
― Ah! Mas eu vou exigir uma condição.

Hugo fica levemente espantado com a audácia do novo aluno que mal conhece.

― Que condição é essa?
― Você tem que cantar ela toda de novo para mim, em outro lugar e a sós.
― Você sabe que isso pode não pegar bem para nós dois se algum lobo perceber do que se trata a música.
― Se ela é bonita, vale a pena o risco. Eu também gostei da sua voz.
― Valeu.

Novamente o silêncio precede dois sorrisos educados.

― Err, está difícil, né? Não consegue mijar?
― Sim, especialmente se eu tiver que interagir com quem está ao meu lado. Nada sai e vou ficando nervoso, tentando disfarçar.
― É, eu te entendo.
― Também não está conseguindo?
― Não. Se eu estivesse mijando até agora, seria o mijo mais longo da minha vida.

Uma sirene toca alto, desviando a atenção deles. Subitamente, o som dos informes sai por um alto-falante preso ao alto da parede.

― Todos os alunos em intervalo, por favor, dirijam-se para as salas agora. Repito! Os alunos em intervalo devem dirigir-se para suas respectivas salas imediatamente.

Hugo e Gabriel se entreolham e viram suas cabeças para baixo.

― É, eu acho que não vai ser agora que vou conseguir.
― Pois é, também desisto.

Ambos se ajeitam para sair, porém notam um volume maior em suas calças assim que vão lavar as mãos. Com um aceno e rosto corado, Gabriel arruma sua mochila no ombro e caminha até a porta.

― Gostei da nossa conversa, Hugo, até daqui a pouco na aula de dever cívico.
― Até.

Hugo retribui com o mesmo aceno de cabeça enquanto encara a silhueta de Gabriel, que some gradativamente diante da porta.

A voz de Gabriel fala dentro de sua mente repetida vezes o seu nome.

― Hugo, Hugo, Hugo, Hugo!

Um susto, e o banheiro da escola não está mais ali. Saindo de um flashback ao mesmo tempo em que volta ao presente, Hugo encontra-se no que antes poderia ser considerada a cozinha da abandonada instalação da Alcateia.

O espaço é menor que o de outras áreas do laboratório, porém considera o estado de preservação daquele ambiente melhor que o do próprio quarto em que está hospedado. Há sinais de ladrilhos rachados e faltando, há tinta descascada em partes da parede, o que é previsível se tratando de um lugar antigo.

Apesar dos eletrodomésticos básicos com pequenos sinais de ferrugem nos pés e em alguns cantos, funcionam melhor que os que viu na sala do doutor Eric. Ele acredita que, pela necessidade diária de comida, houve uma atenção maior por parte do doutor e Henrico para preservar o espaço, já que o uso do ambiente é constante.

Não há, inclusive, escassez de água como nos outros ambientes, ou no Vale das Ruínas.

Estar escondido em uma abandonada instalação secreta da Alcateia traz as vantagens de usufruir de recursos como água vinda de poços artesianos instalados para captação, um imenso espaço para depósito de comida não perecível e um gerador próprio de energia interna, que aguenta tempo suficiente para manter o espaço durante os apagões de racionamento de energia que acontecem na nação.

Comparado ao intenso frio que tem predominado na parte sul da nação nos últimos dias, a cozinha consegue ser minimamente aconchegante e quente. É nesse pequeno lapso de conforto em que Hugo desperta do seu sonho acordado.

― Hugo, você me entendeu? ― Henrico chama enquanto está parado na mesma distância em que Gabriel aparecia na memória de Hugo.

Subitamente, a memória cede espaço à realidade. À sua frente, a fumaça que saía da caneca de café em sua mão já perdera a densidade. A posição de Henrico, parado, esperando uma resposta, somado ao café morno, levam Hugo a perceber que passou mais tempo em devaneio do que imaginava.

O barulho de um velho ventilador rangendo no teto soa mais alto que seus próprios pensamentos naquele momento.

― Me desculpe, Henrico, é que eu venho sentindo falta de uma pessoa.
― É alguém da sua família?
― Eu também sinto falta da minha família, mas no momento, é de alguém mais específico.
― Por tudo que meu pai me ensinou a respeito de Nova São Paulo do Sul e sua população, são minorias os casos de indivíduos que manifestam algum tipo de sentimento por outros, de fora do seu ambiente familiar.
― Eu culpo a droga por isso. Quando eu tomava a Bluebird me sentia apático, inexpressivo, e não queria ter contato com outras pessoas.
― Eu acredito que além da droga, a maior parcela de culpa nesse comportamento é o medo que vocês sentem. O medo de que algo aconteça contigo pode matar toda a empatia, Hugo.
― Verdade, Rico. Eu vivia sempre com medo de ser descoberto e exilado.
― Medo de que?

Hugo está de pé e de costas para Henrico. Ele ensaia encher um recipiente com água para enxaguar a caneca suja em sua mão, mas interrompe o movimento para pensar na pergunta que lhe foi direcionada.

― Acho que medo de ser flagrado amando, de me permitir amar alguém sem culpa. De ser pego atentando contra a Lei Constituinte de perpetuação da civilização.
― Essa pessoa deve ser muito especial para você, então.
― Ele é, o nome dele é Gabriel. Estudamos juntos na academia e estamos concluindo o último ano. Quero dizer, ele deve estar, já que eu estou aqui e acho que nunca mais poderei voltar para essa parte da minha vida. ― Eu não entendo como vocês, humanos, criam leis e punem de um jeito concreto coisas que são abstratas. Vocês todos podem amar, mas decidem punir e condenar o amor que algumas pessoas sentem enquanto que o de outras não. ― Henrico, eu tenho medo que a Alcateia o pegue, eu nunca me senti preocupado com alguém dessa forma antes. Minha mãe sempre foi trabalhadora e seguidora fiel das regras da nação, mas o Gabriel é diferente, ele é como eu. O que nós temos é algo único.

Hugo retorna à louça para finalizá-la e após, volta-se para Henrico, sentando em uma cadeira próxima.

― O que eu e Gabriel vivemos é algo que nos faz não querer viver com o medo a que estamos submetidos. A gente sonha com um tempo e lugar em que poderemos estar juntos, sem condenações porque não podemos procriar e aumentar a população da espécie.

Hugo sente que um choro se aproxima, mas consegue se controlar, anda até Henrico e o abraça. O contato com a pele sintética e as partes de metal expostas relembram a Hugo que aquele corpo não diz respeito, naturalmente, ao de um humano.

Ele sente que o único calor presente naquela interação física é o emitido pelo próprio corpo. Henrico permanece imóvel tempo suficiente para que Hugo se afaste, constrangido.

― Me desculpe, Henrico, acho que fiquei sensível hoje.
― Tudo bem, eu pude perceber pela pressão de seu aperto e dos seus batimentos cardíacos que você está emocionalmente abalado.
― É que às vezes, conversando com você, mesmo que por alguns segundos, você me faz acreditar que é humano. ― Isso faz diferença para você? Quem eu sou e as minhas ações fazem diferença na maneira como você reagirá a mim?
― Eu não sei, Henrico, ainda estou um pouco confuso com esse lugar e ter você como amigo agora. Eu não quis parecer rude, desculpe.
― Não precisa se desculpar. Se você se sente bem perto de mim, independentemente de que eu seja humano ou não, ainda assim sou um ser que está vivendo nesse mundo e estou suscetível à mesma realidade que você, mesmo que eu não seja humano. O mundo não estaria desse jeito se a humanidade não chegasse ao ponto em que se encontra, se tivesse desenvolvido mais a empatia para entender que todos os seres vivos nesse planeta estão suscetíveis à mesma realidade, ou seja, estamos todos cumprindo jornadas aqui. Isso ajudaria o homem a pensar menos em si próprio.
― Você me deu mais coisas para pensar agora, meu caro amigo robô.
― Algo no seu desabafo me intriga, Hugo. Se a Alcateia te caçou pelo fato de você se relacionar com outro humano do mesmo sexo, porque então eles não caçaram o Gabriel?
― Eu não sei a resposta exata para isso, mas acredito que eles me caçaram porque descobri um jeito e consegui, por um breve momento, entrar em contato com pessoas de fora do território. Não devem ter me caçado por ser gay, mas porque eu infringi a lei em tentar compactuar e interagir com pessoas que não são de Nova São Paulo do Sul. De alguma maneira eles conseguiram rastrear o meu sinal e me localizaram.
― O meu pai sabe dessa história?
― Eu ainda não contei para o doutor, pois não sei se ele considera isso importante para os planos de vocês.
― No momento existe um limite até onde o meu sistema é capaz de operar, a rede onde eu consigo trabalhar é reduzida apenas ao território nacional. Esconder os nossos rastros dentro dessa instalação ainda demanda bastante de meu sistema, Hugo. Se você conhece uma maneira de buscarmos aliados para além do que eu possa fazer, o meu pai vai se interessar em saber mais sobre isso.
― A maneira que eu conheço é uma maneira falha Henrico, eu fui descoberto.
― Você lidou com isso sozinho, agora você tem a mim e ao meu pai como aliados para conseguir fazer dar certo. ― Mesmo que nós três juntos consigamos não repetir os erros que cometi, ainda há outro problema: eu só consegui fazer isso utilizando a aparelhagem da sala de rádio da academia, não há como voltar lá.
― Você não, mas talvez o seu namorado consiga.

Após a fala de Henrico, o silêncio da conversa preenche a sala e o ranger de metal do velho ventilador de teto volta a soar mais alto na cozinha. 
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