A rainha ficou chocada quando viu seu coração. O coração da rainha tinha voltado à sua cor original, mas com uma ligeira diferença: o seu coração continha uma espécie de armadura feita com linhas finíssimas de cor de prata.
- O que é isto?! Que bruxaria foi essa? Essas linhas… são da cor dos teus cabelos… o que fizeste a ele?! Que tipo de magia meteste em cima de mim?! E os meus dragões? O que lhes fizeste? Porque é que eles já não estão mais aqui? Quem és tu?!
- Tantas perguntas para uma só resposta – dissera a mulher de cabelos cor de Lua a rir.
Um silêncio pairou entre as duas. A rainha sabia que aquilo não ocorrera por magia. Algures na sua cegueira pelos caminhos da vida, aquela mulher esteve sempre lá, mas a sua mente desconectada ignorou-a. Mas os olhos do coração viram, e ela nem deu por nada.
- Demoraste muito tempo, mas finalmente acordas-te.
-Já me lembro… costumavas estar sempre por aqui, mas eu… não vi, pois preferi conhecer melhor o mundo do que olhar para a pessoa que sempre esteve ao meu lado. – disse a rainha.
- Não há muito a fazer quando uma mente ansiosa controla o coração. Ela vence e torna-te sua escrava. Não é muito o meu costume ir embora sem ver onde a minha perseverança vai. Já tive muita gente no meu caminho. Uns acompanharam-me por breves momentos, outros fundiram-se com os pesares do mundo e outras simplesmente disseram um olá. Iremos dizer muitos olá na vida. Essas pessoas só relembram que não devemos ir por aquele caminho. – disse a mulher com os cabelos cor de Lua.
- E porque não foste embora? - perguntou a rainha.
- Por que não fui embora? Gosto de coisas difíceis. É a minha sina. Um dia, nos meus passeios de aventura, encontrei este teu castelo. Já vi muitos castelos e muitas rainhas ao longo da minha vida, mas tu, com esses teus dragões com ar ameaçador, mas amorosos como a sua rainha, foi diferente. Eras diferente de todas as pessoas que conheci. Algo despertou a minha curiosidade, não sei o quê. Uma rainha sem coroa, sozinha num castelo que só a ela pertence. Entrei, não esperei muito. Rejeitas-te por ser mais uma a tentar iludir há muitos anos. Fui embora e voltei. Fizeste o mesmo. Percebi que o teu coração estava ainda mais doente sempre que voltava. Nunca entendi porquê. Chorei por não conseguir alcançar-te nas noites tempestuosas da tua alma, mas algo fez-me ficar. Talvez loucura? Ou talvez tenha o mundo aos meus pés e nada tenha a perder senão ganhar memórias e histórias. Então fiquei, na sombra, a observar a tua história melancólica e angustiante. Entraste num ciclo do qual eu não poderia quebrar. Um dia, de uma vez por todas, decidi ir embora, mas não antes de tentar entrar com toda a minha coragem na tua sala de trono e fazer-te acordar desse teu sono amaldiçoado pela nevoa da tua mente doente. Sou mulher de correr riscos. Sei perfeitamente que posso sair do teu reino sem nunca mais voltar, mas o que perderei eu? O que não falta por aí são rainhas sem coroas, umas com dragões, outras com leões, mas nenhuma despertou profundamente o meu coração. Não preocupo, treinei-o para um dia desapegar de uma paixão.
A rainha estava sem palavras, baixou o olhar, sentia-se envergonhada por não saber ser uma rainha de verdade.
- Desculpa. – Foi a única palavra que a Rainha conseguiu dizer.
- Se o meu coração está assim quer dizer que… - A rainha não concluiu o que ia dizer porque a mulher dos cabelos de Lua mostrou-lhe uma coisa.
Ela invocou o seu coração. O seu coração tinha uma cor prateada e radiante, tal como a da rainha, também continha linhas finas, mas de cor azul-turquesa. A sua energia estava embutida no coração daquela mulher.
- Continuo sem perceber como isso ocorreu enquanto eu…. estive adormecida nesse tempo todo.
- É o que faz ser cego do coração. Eu sempre estive ao teu lado, mas o teu coração impedia-te de perceber a minha presença. Nunca fiz questão de fazer notar, pois um dia, eventualmente, irias despertar. Mas tudo tem limites e chegamos a um certo ponto no tempo em que temos de tomar uma decisão final. Aqui estou para te ajudar na tua inércia perante o mundo ou então ir embora com a consciência tranquila de que fiz tudo o que podia.
- Tinha todas as razões para ir embora.
- Quem ama espera. – Foi a resposta da mulher.
A rainha não respondeu.
- Se eu fosse embora, a tua energia que está selada no meu coração ia desaparecendo aos poucos, pois treinei o meu coração com as artes do desapego. Mas tu ficavas sempre comigo, como toda gente fica quando se ama alguém com muita intensidade. Ficamos com um pouquinho de cada pessoa que nos passa pela jornada da vida, e tu sabes bem disso.
A rainha sorriu, mas sentiu-se envergonhada por nunca ter saído da inércia das dúvidas da mente. A mulher devolveu o sorriso amavelmente.
- O teu problema foi fingir que tudo estava bem quando nem deste pelo teu coração a reagir. Sem dares conta, foste lidando comigo, o teu coração ouvia-me, mas a tua razão não. Não deste pela minha presença porque o teu passado cegava-te e vivias lá em vez de viver no presente, arranjei formas de te tirar de lá, mas recusavas vezes sem conta, fiz o melhor que pude. Mas nem tudo foi mau, pois enquanto aprendeste finalmente a domar a tua mente, foi nascendo a esperança que um dia pudesses ver-me sem ter a tua mente ansiosa a duvidar de tudo e todos, por causa do que fizeste, do que não fizeste e do que poderias ter feito. Pelos vistos valeu a pena esperar. – Sorriu a mulher misteriosa.
- A vida traz, a vida leva, ninguém fica. Quem fica não permanece muito tempo mesmo que eu queira... a Vida arranja sempre alguma forma de reivindicar, eventualmente irei embora ou tu irás embora. – Disse a rainha.
- Quem gosta fica. Eu estou aqui, pelos vistos a Vida não me perturbou. A Vida ama-te, ela só queria fazer-te uma mulher forte, não gosto de gente fraca, e ela sabia. – Sorriu a mulher.
- Existe muita coisa que não compreendo sobre a Vida e isto é uma delas. – respondeu a rainha.
- A vida não é para perceber, mas para sentir. Só fica quem tu queres e quem te conecta profundamente a ti. A vida é feita de sincronias, e como tal, quem não esta em sincronia contigo vai embora, ou, então, devemos deixar irem à sua vida em paz. Acontece. Amar é libertar para não ver o outro a sofrer. Algures no passado já libertei alguém do qual amava, porque era jovem e ignorante das artes de amar. Tive prazer de ver a outra pessoa sofrer? Não! Achas que fiz o correto? Não na altura. Mas valeu a pena para ela? Sim! Sabes porquê, oh rainha? Quem ama liberta, quem não gosta, amarra-a com medo de a perder, porque para muitos a solidão é algo terrível. Não vale a pena chorar. Ninguém é inocente nesta vida, um dia és inocente, noutro dia és um vilão na vida de alguém! E vais culpar-te eternamente por isso? Só depende de ti. Culpar eternamente não te vai levar a lado nenhum, mas responsabilizares-te, perdoares, aprenderes a lição e seguires em frente, aí sim, tudo valerá a pena. Um dia já me abandonaram, eu um dia já abandonei. Ninguém é santo. Se a Vida te meteu desafios e falhaste, é porque ela te quer ver forte, não porque ela tem prazer em ver-te sofrer e rir dos teus infortúnios. Ergue-te!
- Mas o meu passado... há coisas me envergonho e há cois…. – A rainha interrompida pela mulher dos cabelos prateados.
- Não és feita do teu passado, mas sim do seu resultado, estás sempre a tempo de reescrever um novo presente, estamos sempre a tempo.
A mulher observou-a sentada e serena no seu trono com o seu coração radiante no seu colo. A rainha sorriu de felicidade, pois ela procurou em todos os lugares o que mais queria, no entanto, estava mesmo ali, em frente dos seus olhos. Ela continuava a sentir-se culpada consigo mesmo por acordar tarde. Ela ergueu-se, ergueu-se do passado, ergueu-se das amarras da sua mente viciada por dúvidas. Finalmente conseguiu despertar de um longo sono. A mulher com os cabelos cor de Lua, tocou na sua mão e disse:
- Moça dos Dragões falantes, não tenho muito para oferecer, não tenho um castelo bonito como o teu, não tenho um reino cheio de cor para te acrescentar, nem Dragões, mas tenho o meu amor, a minha presença e toda a minha lealdade para contigo, estarei sempre aqui como sempre estive. – disse a mulher tocando no peito da Rainha. Continuou.
- Muitas noites da alma virão, serei a tua luz quando não conseguires ver, tal como serás o meu escudo nos meus medos e incertezas. Juntas caminharemos, ultrapassando obstáculos atrás de obstáculos. Afinal de contas, o companheiro para a vida é isso, um eterno trabalho em equipa, quando um cai o outro ajuda a levantar.
A rainha olhou-a nos olhos. Por um segundo, viu mil vidas juntas. Recordava de tudo e, ao mesmo tempo, não se lembrava de nada. Depois de muito tempo, as lágrimas voltaram e caíram, não por tristeza, mas sim por alegria. Lá estava ela, a sua coroa que tanto sonhava. O seu tempo estava quase a acabar, mas sentiu-se feliz por ter encontrado a sua coroa. Quem procura, eventualmente, sempre encontra. Enquanto se vangloriavam por ter uma coroa reluzente em ouro decorada com diamantes, outros tinham coroas feitas de amor e alegria. Coroas há muitas, únicas há poucas.
- Ouve Lua em forma de pessoa, o meu castelo é tudo o que tenho, os meus Dragões são apenas ilusões para esquecer a minha solidão, são parcelas da minha alma. Eu não tenho uma coroa como outros têm por aí, extravagantes, sofisticadas. Habituei-me ao facto que simplesmente havia pessoas que nunca teriam coroas. Gosto de estar sozinha, não tenho medo da minha amiga solidão, fiz as pazes com ela há muito tempo.
- Para mim é o suficiente, tenho o mundo nas minhas mãos e queria partilhar contigo, a felicidade é melhor se for partilhada a dois. Eu também não tenho coroa, podia ter muitas, mas a melhor coroa é a nossa alma, sem ela os nossos corações não teriam as cores bonitas que têm. Já vi muita gente com coroas bonitas, mas com corações sem cor, sem luz, simplesmente vazios. – disse a mulher.
A rainha agarrou a sua mão delicadamente e puxou-a para si, abraçaram-se. O tempo parou, mas nos braços delas encontraram paz e segurança. Coisa rara nos dias de hoje.
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