Sentoki acordou e se sentia bastante revigorado. Finalmente pode dormir em um lugar mais aconchegante desde que chegou. Notou que Ashi já havia saído da cabana, então ele decidiu sair também pra ver a paisagem. 

Ao sair ele se surpreendeu com a singela beleza do lugar, podia ver claramente agora com a luz da manhã. Cabanas de tijolos, levemente ornamentadas, com pilastras de barro do lado de fora e o topo das casas folheados de telhas de barro. As casas eram pequenas e modestas, mas tinham uma beleza natural. Os poucos aldeões que viu estavam a certa distância e todos indo na mesma direção, e logo Sentoki viu Ashi se aproximando. 

- Bom dia,  Sentoki - Ela falou, sem nenhuma expressão no rosto. 

- Ah bom dia Ashi, tudo bem? 

- Sim, estava reunindo todo pessoal da vila agora a pouco, vamos ter uma reunião no templo e o assunto é você.

-Sério? - Ele se sentiu meio constrangido percebendo que se tornou o centro das atenções. 

- Sim, agora só faltam nós dois, vamos logo que o ancião não pode esperar.

Ela se virou e seguiu caminhando, e ele foi atrás dela, seguiram por alguns metros, passando por mais algumas casas, e então deram de frente a uma construção diferente, feita no mesmo estilo das casas, mas com uma arrumação diferente, claramente era um lugar importante. Entraram os dois, e o templo estava lotado, tinham cerca de cinquenta pessoas lá dentro, todos sentados em cadeiras simples de madeira. Lá na frente, sentado em um tipo de trono de madeira estava um senhor, claramente beirando os 90 anos pela aparência. Careca e com longas barbas brancas, e seus olhos profundos escondidos por suas grossas sobrancelhas, e usava uma túnica branca que cobria todo seu corpo. 

Ashi levou Sentoki até o ancião e então arranjou um pequeno banco de madeira pra que o garoto pudesse se sentar à frente do homem. 

- Bom dia, Sentoki - Disse o ancião de súbito - Chamo-me Raimugi Totsuzenshi, sou o ancião responsável pela vila Chui, onde nos encontramos atualmente, e represento todos da vila quando digo que estamos curiosos para saber mais sobre o senhor. Pelo pouco que minha filha me disse, o senhor parece ser alguém de muitíssima importância. - Suas palavras eram firmes e sinceras, tinham um ar genuíno e sábio. 

- Bom dia, senhor. Na verdade, não sei se sou tão importante assim, mas se quiserem posso contar tudo que me aconteceu nesses últimos dias, não tenho nada a esconder de vocês, na verdade só tenho a agradecer, porque a Ashi salvou minha vida ontem – Ele olhou pra Ashi e abriu um sorriso singelo, ela permanecia em pé ao lado do ancião sem expressar nenhum sentimento. 

- Não foi nada demais, já disse que era parte de um plano meu ir lá ontem, tudo não passou de uma coincidência. - Ela disse, sem se importar muito.

- Bom, tive boa sorte então heheheh. - Ele estava sem jeito - Bom vou começar a contar. 

E então Sentoki contou tudo como se lembrava, aos poucos, e tendo a paciência de detalhar os acontecimentos. Falou sobre sua irmã primeiro, sobre sua fragilidade desde criança, sempre foram apegados pois Sentoki sempre foi superprotetor. Ela era apenas quatro anos mais nova que Sentoki, e na semana em que sumiu ele parou tudo que fazia pra procurar ela, mesmo quando seus pais já tinham desistido ele continuou, e então ele morreu. Depois contou sobre a experiência pós vida que teve, e sobre seu encontro com a deusa deste mundo, senhora Kagami. Enquanto recontava sua breve história todos se silenciaram, e nenhum barulho foi ouvido, nenhuma palavra foi dita, todos estavam completamente mesmerizados com toda aquela história. Finalmente Sentoki chegou na parte de sua captura e seu resgate por Ashi. O silêncio manteve-se por alguns segundos quando o garoto terminou, e então, depois de ponderar o suficiente o ancião falou. 

- Entendo... - Disse ele em voz firme - Sua jornada está destinada a acontecer meu jovem. Este mundo está infestado de monstros e criaturas das trevas, e nem mesmo se tem registro das épocas antes dessas coisas terem chegado aqui. Mas com certeza ainda me lembro da minha infância, onde a quantidade desses monstros por essas regiões era bem menor.

- Isso é problema, mas vou completar minha missão, e salvando minha irmã ponho um fim nesse outro problema também - Disse Sentoki, determinado. 

- Você é corajoso na palavra, mas de nada vale isso pra mim, o que me interessa mesmo são suas ações. E apesar de ter um bom coração e muita coragem, senhor Sentoki, você é muito fraco e não tem conhecimentos básicos sobre este mundo. Foi um milagre sequer ter chegado aqui, e estamos em tempos em que não podemos confiar na sorte. - Ele parou por um segundo e lançou um olhar profundo e contemplativo em Sentoki – Na vila de Chui, somos ensinados no caminho dos antigos monges que desceram do grande reino de Hirugard. Não temos mais conexões diretas com esse reino atualmente, mas ainda ensinamos nossos homens a arte da “defesa de mão limpa”, também conhecido como Hi Ken. Temos também uma única mulher que foi permitida prática desse estilo, minha filha, Ashi. 

- Isso explica como ela conseguiu derrotar tantos monstros sem usar nenhuma arma e com tanta facilidade - Sentoki estava surpreso, sentia uma nova admiração por sua salvadora. 

- Aquele bando de goblins vinha atormentando a gente faz um bom tempo, muitos sofreram com perdas de entes queridos por causa daqueles monstros. Mas por hora, e graças a vocês dois, esse problema está resolvido. 

- Não é bem assim papai. - Ashi parecia preocupada – Sabemos como aquelas coisas podem se multiplicar como coelhos, enquanto não resolvermos o problema maior eles sempre vão nos atacar! 

- E é por isso que vou pedir para que você, minha filha, acompanhe Sentoki até Hirugard.

- Como é? - Sentoki e Ashi disseram ao mesmo tempo, ouve uma pequena comoção entre as pessoas da vila, e sussurros começaram a ser repassados.

- Isso mesmo, você minha filha é a usuária de Hi Ken mais habilidosa dessa vila, e também a que mais pode aprender e crescer fora desta vila.  

- Mas pai – Ashi parecia transtornada - Alguém precisa cuidar da vila, eu sou a protetora desse lugar. 

- Você já sabe no seu coração qual é a solução dos nossos problemas Ashi. Agora só precisa buscar nele a força e a coragem pra seguir em frente. Se conseguir ajudar nosso herói aqui, também estará ajudando a sua vila, meu bem. Sentoki precisará de ajuda pra alcançar Hirugard e você é ótima como caçadora e guia. 

- Tsc, certo, vou acompanhar ele. - Ela se virou e foi embora, sem dizer mais nenhuma palavra. 

- Bom isso foi inusitado. - Sentoki se sentia excluído por causa do drama familiar. - Será que não dá pra ensinar o estilo de luta de vocês? Me ajudaria bastante na jornada. 

- Infelizmente não sei se teríamos tanto tempo assim. Hi Ken é um estilo de luta que leva anos para ser ensinado, e não usamos armas. 

- E quanto tempo leva pra ir daqui até Hirugarn? 

- Sete dias, exatamente uma semana, indo a pé. 

- Bom se demora tanto então acho que o melhor a fazer é arrumar minhas malas e partir hoje mesmo. - Sentoki se levantou do banco de madeira, sorridente e determinado. 

- Tem certeza de que não vai esperar mais? Vamos preparar um banquete pela sua chegada, ainda está cedo. 

- Não posso demorar, a cada segundo que se passa a vida da minha irmã corre mais risco, desculpe, mas vou ir o mais rápido que puder. 

Sentoki saiu e foi em direção a casa de Ashi, ninguém o impediu ou falou mais nada no templo, pois entenderam seus sentimentos. Chegando na casa ele viu a garota num canto da sala arrumando uma mochila. Ela o notou, mas preferiu não falar nada, parecia irritada. Ele pegou seus itens e se arrumou como podia. Quando finalmente terminou de montar a bolsa Ashi se virou pra ele. 

- E então, quando vamos partir?

- Agora mesmo. - Sentoki disse, sorrindo.

- O-Oque? - Ela estava espantada, não conseguiu dizer mais nada. 

- Bom foi o que eu disse a seu pai, quanto mais eu demoro, mais perto da morte a minha irmã fica, não posso deixar que isso aconteça, sou o protetor dela. 

- Certo, eu compreendo... Se não vamos esperar mais então é isso, já estou preparada. O tempo está bom pra caminhar, então vamos logo enquanto está de dia. 

O povo mal tinha terminado de sair do salão da vila, e viram Sentoki e Ashi se aproximando para dar as despedidas. Falaram pouco e o ancião não se prolongou. A dupla foi até a borda Norte da vila, e com uma última olhada pra trás, foram embora, rumo à Hirugarn. 

No primeiro dia seguiram sem problemas pelos campos limpos da região, rumaram mais pro Oeste ao anoitecer, se afastando da longa montanha que seguia com seus muros imponentes pelo Norte e se aproximaram da linha de árvores à esquerda. 

- Aquela montanha costumava chamar-se Berdarfinn - Ashi começou a falar - Pois isso significa “Casa dos Anões” na língua dos pequenos. Mas hoje em dia é conhecida como "colina negra", por causa dos monstros que vivem lá dentro.  

- Puxa, anões também existem nesse mundo? 

- Sim, mas não aqui, não mais, todos foram mortos ou expulsos. Talvez encontremos algum em Hirugard, mas maioria deles mora nas terras além ao norte, onde ficam as montanhas da neve eterna. 

- Falando em anões - Sentoki deu uma olhada de relance para as orelhas de Ashi - Você é uma elfa, não é? 

- Não... - Ela não olhou pra ele ao responder, seu rosto tornou-se distante e melancólico – Sou uma ninfa, é como chamam os filhos da raça humana com a raça élfica. 

- Oh, agora entendi então. Na vila não tinha ninguém além de humanos. Então o malandrinho do ancião amou uma elfa? 

- Não, Sentoki. Eu fui abandonada pelos meus verdadeiros pais. - Ao dizer isso a tristeza podia ser vista em seu rosto – Uma ninfa é uma vergonha tanto na sociedade humana quanto na sociedade élfica. Só uma vila de monges que se distanciaram das normas do mundo que poderia ter criado alguém como eu...

- Eu não sabia, desculpe. 

- Não se desculpe. Acho bom nós nos conhecermos um pouco melhor. Agora você entende o porquê eu quero tanto proteger aquele lugar, certo? 

- Sim, te entendo e tenho sentimentos parecidos sobre minha irmã. - Ele parou por um segundo e se sentiu triste. - Ela é meu bem mais precioso. Apesar de ser delicada e frágil, pois tem uma doença rara, ela nunca deixou de sorrir, sempre foi feliz e sempre me incentivou a seguir em frente, não importa o que acontecesse. Não consigo me ver dando as costas pra ela, ainda mais agora que realmente sei onde ela está. 

Ambos seguiram em silêncio. A noite já estava no seu ápice, mal podiam ver a alguns palmos à frente do rosto, decidiram entrar de vez na floresta a Oeste e descansar nas grandes raízes que se espalhavam pelo chão. 

- Essa floresta já foi mais segura... – Disse Ashi – Descanse aí e eu vou ficar de vigia, daqui a duas horas eu te acordo. 

- Certo, caso aconteça alguma coisa não faça nada sozinha, eu ajudo – E então deitou-se e tentou se arrumar de algum modo levemente confortável. Em poucos minutos estava roncando.

“E o que um fraco como você faria pra me ajudar”, pensou a ninfa. Relembrando da cena no covil dos goblins. Mas nem ela podia negar a veracidade da história do rapaz, e da sua possível importância no mundo. “Talvez ele tenha algum tipo de poder e um potencial muito elevado, talvez aquilo fosse um teste pra me recrutar, quem sabe...” Enquanto a ninfa se perdia com seus pensamentos as horas foram passando, e a noite se tornando cada vez mais escura. Ela ouviu o farfalhar de algumas folhas e imaginou ser o vento ou algum animal da região, porém o som continuava, mais e mais, como uma marcha. Foi quando Ashi se alertou pro possível perigo, e antes de adentrar mais fundo na floresta, seguindo a direção do som, deu uma última olhada pra Sentoki, que dormia como pedra no chão, e pensou “não vale a pena acordar ele, só iria me atrapalhar”. E então com um salto, desapareceu na escuridão da floresta.