DEZ minutos — Eleanor me levou na garupa da sua mobilete e mesmo que eu jamais admita para ela, foi um pouco divertido — e uma porção de anéis de cebola fritos depois, quase não lembro o que me deixou tão triste.
Provavelmente porque pude ir ao banheiro assim que chegamos na lanchonete e também porque é impossível ser triste quando se está tomando milk shake.
— Como você chama de nojento sem provar? — argumento com Eleanor.
Ela faz uma careta e divide o olhar entre mim e o copo de vidro cheio de milk shake sabor goiaba — uma iguaria que na minha opinião deveria ser patrimônio cultural de Cassiopeia.
— Do mesmo jeito que eu sei que berinjela é nojenta. Ou cenoura, ou pizza. — rebate, dando de ombros e pegando outro anel de cebola.
Tiro a boca do canudo de papel e a encaro abismada.
Ok, é comum pessoas que não suportam verdura. Mas pizza? Quem não gosta de pizza!?
Eleanor Cavalcanti, aparentemente.
— Pizza!? Você não come pizza?
A menor sacode a cabeça, seus cachos bem definidos acompanhando o movimento de forma hipnotizante. Ela mastiga de boca fechada por um tempo antes de voltar a falar:
— Não consigo. A textura, o cheiro... — Eleanor aperta os olhos e seu corpo se contorce num arrepio. O tipo de arrepio que dou quando eu lembro do gosto detestável que quiabo tem. — É incomível.
Quero muito debater com ela, mas me limito a soltar um "Ok" e volto a tomar meu milk shake antes que ele derreta. Além disso, acho que já fui má o suficiente com Eleanor por um dia — ou pra vida toda —, é melhor pegar leve.
Viro o rosto, observando aos arredores.
Caverna é uma lanchonete vintage com chão de cerâmica preta e branca, como num tabuleiro de xadrez, mesas redondas, um balcão de madeira, assentos altos de couro, paredes pretas grafitadas, posters de bandas de rock e jogos antigos.
Tem também duas daquelas máquinas de fliperama antigo, uma mesa de sinuca e outra de totó num dos cantos, bem ao lado de um letreiro velho que já não acende mais.
Em teoria, esse lugar era pra ser um bar, mas como a única clientela que o dono conseguiu atrair foi um punhado de adolescentes viciados em comer porcaria e que amam jogar totó... Virou lanchonete.
Ainda tem uma prateleira de bebidas atrás do balcão e perto da porta que dá pra cozinha, mas dificilmente algum adulto vem aqui beber.
No meu ponto de vista, o lugar só não fechou por conta do molho especial que vem de acompanhamento com a batata frita e os anéis de cebola.
E o milk shake de goiaba. Claro.
— Aqui o pedido de vocês meninas. — diz Gil, servindo nossa comida.
— Obrigada Gil! — sorrio para o rapaz ruivo.
Ele acena com o indicador e o dedo médio, depois se afasta, voltando para a cozinha.
Ao meu lado, Eleanor está brincando no banco com assento de couro, girando e girando sem parar.
Enquanto me estico para alcançar a garrafa de ketchup ela finalmente se dá conta de que seu hambúrguer está bem ali e gira uma última vez, ficando de frente pro balcão.
Levo um anel de cebola a boca e observo enquanto Eleanor dá a primeira mordida no seu lanche.
— Muito bom, né? — sorrio, orgulhosa em apresentar a melhor lanchonete da cidade pra alguém.
É até absurdo que ninguém tenha trago ela aqui antes.
— Muito bom! — murmura Eleanor, balançando os pés toda contente.
Solto uma risadinha, intrigada pelo momento e desembrulho meu próprio sanduíche.
— Sério mesmo que cê não conhecia esse lugar?
— Não conhecia. — repete, ainda de boca cheia. A outra dá mais algumas mordidas, uma atrás da outra. Uau, alguém estava mesmo com fome. — Eu... — ela se interrompe por causa de um soluço.
Jogo a cabeça pra trás e rio ao notar a expressão envergonhada de Eleanor. Ela arregala os olhos e tampa a boca com uma das mão, suas bochechas escurecem quando ela solta outro soluço.
— Toma. — digo, empurrando o copo de refrigerante que ela pediu na sua direção.
Cavalcanti dá um longo gole e respira fundo, fechando os olhos.
Dou uma mordida no meu hambúrguer e a observo tentar controlar a respiração pra se livrar do soluço.
— Obrigada Jô. — responde, já recuperada.
Mexo os ombros sem saber o que dizer.
É estranho. Algumas horas atrás eu preferia morrer do que ficar presa com Eleanor Cavalcanti, mas agora estou aqui, dividindo um momento com ela na minha lanchonete favorita.
Por vontade própria.
A vida é mesmo uma caixinha de surpresas.
— Hum. Não me lembro de ter dito que você podia me chamar de Jô. — arqueio uma sobrancelha.
Eleanor se encolhe ao meu lado e abaixa o olhar, notavelmente borocoxô.
Reviro os olhos e dou uma cotovelada de leve nela.
— Ah, tenha dó! Tô zoando Elean... — me interrompo quando seus olhos amendoados me fitam. Enormes, brilhantes e pidões. Meu Deus, olha onde eu fui me meter. —... Ellie. — corrijo.
E de forma nada surpreendente ela abre um sorriso enorme, as jóias abaixo do seu lábio inferior bem evidentes.
É tão estranho... Esse tipo de piercing sempre me dá a impressão de que a pessoa é séria, intimidadora... Mas causa o efeito oposto em Eleanor.
Prendo uma mecha do meu cabelo atrás da orelha e me concentro na comida pra evitar pensar em coisas muito complicadas.
— É a primeira vez que conheço uma lanchonete vinte e quatro horas. — fala Cavalcanti, finalmente olhando a decoração ao redor.
— É que eles fechavam super tarde e abriam cedo pra café da manhã, então o dono achou que valia a pena funcionar sem parar. Sorte a nossa.
Sem perceber, dou um sorriso e ela retribui de imediato.
Eleanor se inclina na minha direção, encostando o ombro no meu.
— Somos amigas agora?
Quase me engasgo com o queijo derretido e tenho uma crise de tosse.
Eleanor, atenciosamente dá alguns tapas nas minhas costas e empurra o meu milk shake.
Tomo um gole, mas em vez do gosto doce de sorvete e goiaba tudo que sinto é aquele amargor típico de notícias ruins.
— Olha... Você foi legal comigo. Eu fui legal com você. Não quer dizer que somos amigas. — mordo o lábio inferior, receosa.
Nem é mais por mim e sim por ela. Fui super idiota desde que nos conhecemos e do mesmo jeito que não ia querer ser amiga de alguém que me tratou mal sem saber nada de mim... Não posso ser hipocrita e fazer isso com Eleanor.
— Ah. — sua voz desce alguns tons e o seu sorriso some. Ela brinca distraidamente com o canudo do seu copo e depois me olha por baixo da franja. — Ok, entendi. Desculpa.
Eu devia enfiar um monte de pedras nos bolsos da minha calça e me lançar no mar. Sinceramente!
Não importa o quanto eu tente fazer direito, tudo que sai da minha boca deixa Cavalcanti pior e agora eu meio que me importo o que torna a coisa duplamente horrível.
Que ódio Ana! Que ódio de você!
Respiro fundo e empurro o meu óculos de volta pro lugar, depois me viro no banco pra ficar de frente para Eleanor.
Ela me imita, encostando o joelho no meu e eu sinto uma corrente elétrica partir dele até minha nuca.
— Eleanor você sabe porque eu não gosto de você? — ela morde o lábio e nega com um aceno. Ótimo, agora me sinto mil vezes pior. — No meu primeiro dia, no intervalo entre a quinta e a sexta aula, eu fui ao banheiro e você estava lá... Enquanto lavava as mãos você comentou do meu broche...
Engulo em seco e dou uma olhada discreta ao redor antes de continuar, só pra ter absoluta certeza de que não tem chance alguma de ouvirem.
— Você lembra como chamou?
— O quê? — ela junta as sobrancelhas. — O seu broche?
— É. — ela responde que sim, mas eu me adianto antes que ela diga por mim. — Você falou "gostei do seu broche lésbico."
— E o que tem?
— Tem que é só um broche da Cassandra de As Enroladas Aventuras da Rapunzel. Uma personagem de um desenho que ninguém na turma além de mim assiste.
— Você me odeia porque tem ciúme de uma personagem de desenho?
— Não! Eu não gostei de ti porque você descobriu em um segundo que eu sou lésbica e eu fiquei com medo de que falasse pra todo mundo! — sibilo.
— Ah.
Endireito os ombros e viro pro balcão novamente.
Ainda é esquisito falar essa palavra em voz alta, porque eu nunca tive chance... Ou coragem de usar. É meio mágica, mas também deixa minha língua dormente.
— Pois é.
— Mas isso é ridículo Jô! — a afirmação dela me puxa de volta pro momento.
— Talvez pra você, que viveu esse tempo todo numa cidade enorme. — desdenho. — Mas aqui em Cassiopeia todo mundo sabe da vida de todo mundo e a maioria dos pais prefere ter uma filha... — mordo o lábio inferior, desconfortável. Como chama quando você sente vergonha do lugar em que cresceu, porque mesmo sabendo que é um lugar ruim pra você... Não consegue deixar de amá-lo? — ...Morta do que lésbica. Inclusive, essa é outra coisa em você que me dá raiva. Cê não tem medo.
Acho que eu devia calar a boca e nunca mais beber na vida. Inclusive, será que ainda tô bêbada? Quanto tempo demora pro álcool sair do organismo?
— Quem disse que não? Eu tenho medo de um monte de coisas! Por exemplo... Tenho medo de pisar num ouriço do mar e ter que amputar o pé, tenho medo de palhaços, de comer sushi e morrer, de dentista... De acordar atrasada pra escola, me trocar super rápido, sair com pares de meias diferentes e todo mundo rir de mim... — Eleanor dá de ombros e termina seu hambúrguer numa mordida só. — E eu disse "ridículo" porque adivinha? Também sou lésbica!
Abro e fecho a boca, em choque.
— Você?
Cavalcanti dá um sorrisinho, fecha os olhos e concorda com um aceno.
— Sim, eu. — repete, apontando para si mesma.
Minha cabeça ecoa a informação como se fosse uma caverna escura.
Eleanor é lésbica, Eleanor é lésbica, Eleanor é lésbica, Eleanor é...
— Lésbica? — engulo em seco.
— Hunrum. Cem por cento!
— Nossa. Eu não... Hã... — coço a nuca, com vergonha. Nossa parece que eu julguei Eleanor totalmente errado. — Legal.
— Obrigada. — seu tom de voz é doce, então suponho que ela não está caçoando de mim por perder a funcionalidade do meu cérebro.
Enquanto ela bebe mais um pouco do seu refrigerante e ataca os últimos anéis de cebola, eu discretamente enxugo uma lágrima fujona.
Não sei porque estou chorando agora. Alívio? Identificação? Ódio de mim mesma por me desesperar tanto ao ponto de agir como uma pessoa horrível com quem não merecia?
Sinto a mão delicada e quente de Eleanor no meu meu braço.
Quando a olho nos olhos dessa vez, não tem brilho nenhum. Ela parece um pouco triste, a testa franzida e os lábios apertados.
— Mesmo sem ser amigas, eu nunca ia fazer algo assim com você Jô. — sussurra e então desvia o olhar para o balcão a nossa frente. — Sei como é ser tirada do armário sem estar pronta... Não é algo que gostaria de ver ninguém passar.
Respiro bem fundo, sentindo meu coração errar algumas batidas ao me dar conta do que ela está falando.
A vontade de perguntar sobre toma minha garganta, mas não me atrevo. Em vez disso decido mudar de assunto:
— Espera... Você disse meias de pares diferentes? Esse é seu pior medo? Sério, Ellie? — uso o apelido como um apelo.
Felizmente funciona.
Cavalcanti pisca surpresa e então ri. Rio também, sentindo meu rosto arder. Sou uma idiota.
Ela aperta meu braço de novo, me causando um arrepio e deixa o corpo pender para frente, encostando a testa no meu ombro.
De repente a brincadeira perde a graça e meu corpo todo fica tenso.
— Não o pior... — resmunga Eleanor, finalmente se afastando. — Mas quando sonho com isso, sempre acordo suando frio! Juro pra você!
Forço uma risadinha, para que ela não note meu nervosismo e então a empurro de leve.
Não sei se ela inventou isso pra fazer eu me sentir melhor, mas funciona.
— Hum. Não acho que as pessoas ligariam pra suas meias. Nem que você usasse umas bem bregas. Todo mundo ainda seria seu amigo. — constato o óbvio.
Porque ela é Eleanor Cavalcanti, a menina nova. A garota descolada de Amarílis que anda por aí com sua jaqueta de couro e confiança de sobra, como se fosse o ideal romântico de um filme clichê.
E que é cem por cento lésbica!
Que esquisito. Passei tanto tempo sentindo como se eu fosse a única garota sáfica de Cassiopeia, como uma espécie em extinção, mas agora tem Eleanor.
Isso me faz pensar em quantas outras garotas que beijam garotas existem por aí e como eu, só são muito boas em disfarçar.
Talvez Ludmila seja uma. Talvez Monique também...
Levo a mão a minha bochecha, sentindo meu rosto quente com a possibilidade. Também não consigo parar de sorrir feito uma idiota.
— Eu não acho que seus amigos iam ligar pro fato de você gostar de garotas. E se eles ligarem, é porque não são seus amigos de verdade. — fala Eleanor, retomando a conversa.
Forço uma tosse, limpando a garganta e me recompondo, fazendo mais uma confissão:
— É justamente disso que eu tenho medo.
Ficamos em silêncio por alguns instantes. Cutuco o milk shake com o canudo, mas o hambúrguer me deixou cheia e decido não beber o resto, por medo de vomitar.
— Que tal assim. Se eu for pra aula na segunda com as meias super bregas, você aceita ser minha amiga? Fechado?
Ela arqueia as sobrancelhas e levanta a mão pra mim, com o dedo mindinho esticado.
Seu pulso é cheio de pulseiras que fazem barulho quando ela se move — uma em particular me chama atenção, é feita de miçanga e tem uma concha de verdade pendurada.
Rio com gosto da proposta boba dela, mas por impulso, enlaço seu dedo mindinho com o meu.
Engraçado... No começo da noite tudo o que eu conseguia pensar era em voltar pra casa, depois ao ficar presa naquele banheiro junto com Eleanor achei que o universo nutria um ódio particular por mim, mas agora não me importo de passar quanto tempo for na companhia dela.
Nada mal universo, nada mal mesmo.
— Tá. Pode ser. Mas tem que ser as meias mais bregas do mundo. Se não, não vale! — digo.
Eleanor sorri outra vez e aquele brilho característico volta aos seus olhos com tudo.
É anestesiante.
— As meias mais bregas do mundo. Entendido!

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