RESSACAS são humilhantes por si só, mas uma ressaca moral tem a habilidade de ser ainda pior.
Quando Eleanor me levou de volta para a casa de Kaique, a festa já tinha terminado — mas também, eram duas e pouca da manhã —, então eu tomei um banho, pus meu pijama e dormi numa das espreguiçadeiras no deck próximo a piscina.
Só eu, meu travesseiro e um lençol finíssimo que não me protegeu nada do frio noturno de Cassiopeia.
Como era de se esperar, acordei com dor de cabeça, toda travada e o corpo dolorido por ter deitado em algo que não era uma cama, mas fiz um esforço e me levantei antes de Kaique e Lud.
Não me sentia pronta pra falar com nenhum dos dois, por isso voltei pra casa cedo, na surdina — mas deixei um aviso na geladeira da tia Isis pra eles.
Minha mãe estranhou, afinal eu tinha dito que ia passar o fim de semana todo no Kaique, porém quando falei que tinha mudado de ideia pra estudar matemática pro vestibular ela não perguntou mais nada.
Até assisti umas videoaulas no Youtube, fiz umas dez questões num site — errei sete, mas o importante é a tentativa — e depois me distraí com as recomendações de vídeos. Quase todos sobre desenho.
No domingo arrumei meu quarto, ajudei meu pai no almoço, levei meu cachorro pra passear. Li um pouco, vi vários edits de Horro Drama Club no Tiktok e depois fui pro meu trabalho.
Me deitei pra dormir cedo, mas passei a noite em claro, revivendo toda a desgraça da festa de sexta como se fosse uma protagonista sem sal num flashback com música triste — isso porque eu estava mesmo ouvindo uma playlist triste no Spotify.
Boa parte da minha memória estava corroída pelo efeito da bebida, mas o que eu mais queria esquecer... Não consegui.
Por isso que hoje — segunda — sou a única aluna que veio pra aula, só pra não precisar lidar com drama ou a minha ressaca moral de ter mentido pra Eleanor.
Falta pouco pra primeira aula e como mais ninguém apareceu, significa que toda a turma topou cabular e ir para a praia, assim como sugeriram no grupo de mensagem.
Pensei que ia precisar de uma desculpa pra ficar em casa hoje, mas que bom que o universo me deu essa colher de chá. Nada de mentir pra minha mãe e nem de ter que conversar com Kaique sobre Tatiane ou fingir pra Ludmila que não estou magoada por ela beijar minha crush.
Respiro fundo e levo a mão a boca, roendo o canto da unha.
Estou tão curiosa pra saber como ficaram as coisas depois daquele "Verdade ou Desafio". Será que o pessoal tava bêbado demais pra lembrar? Será que vão falar mal da Lud ou da Monique?
Sinto um desconforto enorme na boca do estômago. Não sei se é raiva ou só curiosidade... Medo, talvez?
Óbvio que tô preocupada com minha amiga, quero saber se o tal beijo foi só brincadeira ou se... Ela também gosta de garotas.
Admito que ontem de madrugada me permiti fantasiar sobre isso. Imaginei vários cenários em que ela diz sim e eu posso finalmente parar de atuar. Não aguento mais fingir que acho os caras que ela acha gatos atraentes.
Pego o celular e desbloqueio a tela, que já está na minha conversa com ela.
A última mensagem foi Lud quem mandou.
Ela perguntou se eu tava melhor — provavelmente por causa do bilhete que deixei na geladeira, mentindo sobre ter tido uma crise e precisar voltar pra casa por não estar com minha bombinha — da asma. Respondi que sim e não falei mais nada.
Talvez eu deva mandar um oi? Ou avisar que não vou pra praia...
— Bom dia! Como vai minha turma... — levanto os olhos e fito o professor de matemática, que parece espantado ao ver as cadeiras vazias. —...Favorita? O que houve? Hoje é dia de honrar a bandeira ou algo assim?
Sorrio amarelo para Tiago e dou de ombros.
Não posso contar pra ele onde todo mundo está — ou pra qualquer outro professor —, se não pode chegar nos pais da galera e aí eventualmente quando todos se ferrarem menos eu, vão descobrir quem cabuetou.
— Ah, já sei! — o homem de óculos quadrado e barba rala estala os dedos, apontando pra mim. — Pegadinha do terceirão, né? Estão se escondendo em algum lugar?
Mais uma vez mexo os ombros. Pra não dá merda, o melhor é ficar de bico calado.
Tiago põe a cabeça pra fora da sala, olhando o corredor. Ele entra, coloca seu material na mesa perto do quadro e sai passeando pela sala, olhando as cadeiras, atrás da porta, em todo todo canto.
No fim, para de costas pro quadro, com as mãos na cintura e uma interrogação no rosto.
— Ok, pessoal! Vocês me pegaram, podem voltar! — grita, batendo palmas.
Suspiro, com um pouco de dó.
E pensar que vai ser assim todas as aulas...
Meu celular vibra e pela barra de notificação percebo que é uma mensagem de Ludmila.
Sinto meu corpo todo tenso, mas nem chego a desbloquear a tela de novo porque no mesmo instante escuto o som de solas deslizando no piso.
Olho para porta e lá está o motivo da minha ressaca moral.
— Sinto muito, muito, muito, muito! Minha moto quebrou e eu tive que vir a pé! — Eleanor fala às pressas e por causa do sotaque não entendo o restante da frase.
— Ahá! — o professor Tiago aponta para ela, como se tivesse desvendado o culpado de um episódio de Scooby Doo.
A menina para de imediato, as mãos apoiadas no batente da porta.
Sem conseguir evitar, admiro como o uniforme composto por uma blusa branca com o brasão da escola e uma calça amarela ficam estranhos nela. A jaqueta de couro está ali, assim como os coturnos e, o óculos escuro com armação vermelha no topo da cabeça e os piercings, mas com o cabelo preso em dois coques na nuca e nenhuma maquiagem ela parece um pouco diferente.
Ou será que é porque agora eu sei algo que ninguém mais sabe?
— Ué? — Eleanor observa a sala praticamente vazia. — Cadê todo mundo?
Seus olhos correm pelas carteiras até me encontrar, bem ali no fundo da sala, exatamente como manda o mapeamento.
— Eu que pergunto! — rebate o professor. — Ia passar uma atividade valendo ponto, mas se ninguém vai aparecer...
Ele cruza os braços e solta um suspiro cansado, depois caminha até suas coisas.
Cavalcanti faz uma careta e aperta as alças da sua mochila — também preta, para a surpresa de ninguém —, entrando cautelosamente na sala.
Abaixo o rosto quando ela me encara de novo, concentrada na mensagem da minha melhor amiga.
[Lud linda: Anaaaaaaaaaaaaaaaaa]
*FOTO*
[Lud linda: gatinha cadê vc????]
[Lud linda: não me diz que vai amarelarrr]
Sorrio para a foto dela, super contente segurando alguma bebida de morango e álcool, por conta do sol uma parte da imagem tá meio escura, mas tenho noventa por cento de certeza de que Lud está numa toalha de praia, com Kaique fazendo careta logo atrás.
Mordo o canto da boca e começo a digitar, meus polegares frenéticos escrevem uma mensagem confusa — uma mentira — com quase cinco linhas antes de eu me dar conta de como vai soar suspeito.
Melhor ser básica e direta, assim fica mais difícil dela perceber que tô dando desculpa esfarrapada.
[minha mãe não deixou ;(]
[to na aula]
Ela manda um monte de figurinhas tristes e então mais algumas mensagens.
[Lud linda: afffffffff]
[Lud linda: se vc tivesse dito]
[Lud linda: eu tinha pedido pr minh mae falr com el]
[tudo bem ;((]
[boa praia!]
Meu Deus será que a exclamação foi exagero? Quem usa exclamação por mensagem?
Puta merda sou muito burra.
Saio do aplicativo de mensagem e bloqueio a tela do celular.
Escorrego na cadeira, me encolhendo dentro do meu moletom.
Queria desaparecer...
Mas bom, acho que tá tudo bem com a Ludmila, né? Ela não estaria empolgada pra praia se alguém a tivesse tratado mal...
— Bom dia coração. — abro os olhos e ajeito as costas ao ouvir a voz de Eleanor tão perto. — Sabe o que tá rolando?
Ela larga sua mochila no chão ao lado da minha e senta na cadeira à minha frente.
Franzo a testa, confusa. Esse não é o lugar dela no mapeamento e também... Coração? Blé, fica mais brega cada vez que ela diz e eu tenho absoluta certeza que já falei pra não usar essa palavra comigo!
— Dia de praia. Toda a turma foi. Inclusive... — murmuro, percebendo o óbvio. — Porque você tá aqui?
— Não tenho celular, lembra? Ou melhor, não um dos bons. — resmunga, tirando uma velharia do bolso e sacudindo. — Ganhei da minha vó ontem.
É impossível não rir. O telefone dela é praticamente da Idade da Pedra, do tipo que abre e fecha com som alto, com botões e que só manda mensagem por sinal de operadora.
— Mas e você? — Eleanor sorri enquanto coloca os braços no apoio da carteira em que está. Inclino a cabeça, procurando por Tiago, mas ele saiu da sala. — Também não gosta de praia?
— Você não gosta de praia? — devolvo a pergunta antes de pensar.
Nunca vou conseguir me livrar de Eleanor se não parar de falar com ela.
Cavalcanti deita o rosto no antebraço e projeta o lábio para frente. Seus cachos da sua franja — sempre bem definidos — emolduram seu rosto em cascatas rodopiantes e pesadas.
Por instinto levo a mão ao meu rabo de cavalo, apertando-o. Diferente dela não fui abençoada com um cabelo definido, apenas fios que quebram fácil e formam frizz mais rápido do que consigo acompanhar.
Então mantenho ele sempre preso. Menos estresse.
— Mais ou menos... Gosto da água, mas odeio a areia.
Plausível, quem curte areia de praia entrando por baixo da roupa de banho?
— Hum. — solto e cruzo os braços.
Meu celular vibra outra vez. Quatro novas fotos de Ludmila.
Esse dia vai ser in-su-por-tá-vel.
— Ei Jô. — o coturno de Eleanor cutuca meu Vans.
Reviro os olhos.
— Que que foi?
Quando me atrevo a levantar o olhar, percebo que ela está com as pernas no ar, a barra da calça super folgada puxada até quase os joelhos para exibir meias de pares diferentes e super chamativas.
Uma é de Ele de Meninas Superpoderosas e a outra é do Bob Esponja.
Levo a mão a boca, tentando segurar a risada pra que ela não veja. Não porque achei graça, mas porque fui pega de surpresa. Só isso.
— E ai? Gostou? — Eleanor agita os pés e inclina o corpo.
Ela estreita os olhos por baixo da franja e da um sorriso de canto.
Passo a língua pelos lábios ressecados, maquinando a coisa certa pra falar.
— Não são bregas. Só são bobas.
— Deixa de ser má perdedora Jô! — ela solta a barra da calça e se estica por cima da minha mesa pra me bater no braço.
Murmuro um "Aí" involuntário e aliso a região. Acho que os anéis dela fizeram um rombo na minha pele.
— Desculpa.
Bufo, me estressando.
— Outra coisa que não gosto em tu. Pede desculpa demais.
— Des... — ela se interrompe e então ajeita os ombros, se dando conta. — Bobona. — fala, mostrando a língua pra mim.
Rio baixinho, sem deixar de perceber no ponto brilhante bem no meio da sua língua.
Ah.
Outro piercing.
— Doeu?
Pergunto porque sou doida pra por um piercing, em qualquer lugar, mas sou igualmente medrosa e de quebra minha mãe me colocaria pra fora de casa ao descobrir.
— Quando eu caí do céu? Não. — brinca, dando uma piscadinha.
Espera...
Isso foi um flerte!?
ELEANOR CAVALCANTI ACABOU DE FLERTAR COMIGO?
Não Ana, calma! Foi só de brincadeira.
Não é porque ela é lésbica e eu sou lésbica que necessariamente vamos flertar, né?
Tá tudo bem, suave na nave. Além disso, eu vivo fazendo isso com a Lud e o Kaique. Coisas bobas de amigos e...
Epa.
— Elean... — minha voz morre a medida que sua feição forma uma cara emburrada. Argh, certo, o apelido. — Ellie. Tem certeza que quer ser minha amiga? Eu sou chata, praticamente uma idosa presa no corpo de uma adolescente. Também sou meio grossa, esqueço de responder mensagem por dias e de quebra te tratei mal, lembra? — enumero com os dedos da mão esquerda.
Não sei mais o que posso dizer pra convencê-la a desistir dessa ideia boba. Se falar que a odeio não funcionou, o que vai?
— Eu gosto de idosos, eles são fofos. E — ela pega meu pulso com gentileza, enlaçando o dedo mindinho com o meu. — Promessas de dedinho são inquebráveis.
— Ih... Sei não, as meias não são bregas! E-e você disse que... Bom, ninguém veio p-pra aula além da gente, então meio que... T-tirou o sentido da coisa e-
— Inquebráveis Jô! — Eleanor repete, sorrindo com dentes e gengiva, os olhos quase fechados.
Solto um suspiro derrotado e escondo o rosto na mão livre.
É. Me fodi.
Abro os dedos, espiando a menor.
— E aí. Pronta?
Um dos seus dentes de cima é menor que o outro, reparo. É uma diferença tão pouquinha que só percebo porque estamos bem perto e por causa da iluminação boa da sala. O dente também está com o esmalte meio lascado.
Fofo.
O que foi que ela disse?
— Pronta pro quê?
— O seu desafio pra merecer minha amizade, óbvio. — explica, o sotaque forte quase disfarçando a maldade do seu tom.
Ressacas morais. Sempre as piores.
BALANÇO a cabeça freneticamente enquanto Eleanor dá outro suspiro irritado.
— Jô, você não pode recusar todos meus desafios!
— Claro que posso! Não decidimos as regras e até agora você só deu ideias péssimas. — rebato, cruzando os braços sobre o peito.
A menor bufa e dá outra mordida no seu lanche, um sanduíche que trouxe de casa e que foi feito por ela mesma — Eleanor até ofereceu um pedaço, mas recusei. Estou muito bem com meu cachorro quente.
Normalmente é difícil conseguir um, porque agora que sento lá no fundo chego super atrasada na fila da cantina.
Mas! Como hoje eu e ela somos as únicas alunas do terceiro ano, consegui comprar não só um cachorro quente e sim dois.
Ainda não é um dia bom, porém caiu bastante no ranking de pior dia de todos. Atualmente está empatado no terceiro lugar com meu último aniversário — quando passei mal depois de comer algo estragado e em vez de uma festa ganhei uma noite no hospital e soro na veia.
— Você não fica tonta? — pergunto, seguindo Eleanor com o olhar.
Desde que me sentei pra lanchar ela está dando voltas e voltas ao redor da mesa que escolhi, enquanto come seu sanduíche.
— Não. Estou pensando. E quando penso gosto de andar.
Ergo as sobrancelhas de leve.
— Tão tá.
Ela dá mais duas voltas completas em torno da mesa antes de soltar um grito.
— Já sei! — exclama, espalmando a mão na mesa.
Dou outra mordida no meu cachorro quente no mesmo momento e tomo um susto, como consequência um pouco de molho cai na minha camisa.
— Bosta.
Limpo o queixo com um guardanapo e estico o pescoço, puxando o tecido para ver o estrago.
— Merda minha mãe vai me matar...
Eleanor solta um suspiro assustado e corre até uma mesa próxima. Paro de tentar limpar a mancha para observá-la conversar com um grupo do primeiro ou quem sabe nono ano. Um menino sorri ao ouvir o que ela diz, acena com a cabeça e entrega o porta-guardanapo.
Desvio o olhar quando ela se vira na minha direção, a ideia de que Eleanor saiba que estou observando não me desse bem. O motivo desse pensamento, no entanto, é um mistério.
— Aqui Jô! Desculpa mesmo. S-se você quiser eu tenho uma camisa extra na minha mochila e-
— Tudo bem. Dá pra aguentar. Quando voltar pra casa eu tiro. — resmungo, aceitando os guardanapos.
Com um pouco de esforço consigo deixar a mancha mais clara e como o molho caiu mais perto da região da barriga dá pra eu esconder ao fechar meu casaco.
Menos mal.
Desvio o olhar da minha roupa para Eleanor. Não consigo entender muito bem que expressão ela faz por conta dos óculos escuros que ela usa, mas como está mordendo o lábio inferior com força e a testa franzida, suponho que tá com medo de ter me deixado brava...

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