— Não vai me dizer no que pensou? — pergunto, tentando acalmá-la.
É só uma blusa, não o fim do mundo. Na pior das hipóteses terei que comprar uma nova e como tenho essa há dois anos, talvez seja hora mesmo.
— Hã? — ela sobe o olhar, me encarando. — Ah, sim! Que tal se... Você subir no pé de jambo?
— Quê? Nem pensar! E se que cair e quebrar a perna?
— Jô olha o seu tamanho! Suas pernas são tão longas que num instante você sobe e desce, é um desafio mole! — rebate, apontando com as mãos para mim.
Ironicamente, foi um comentário dela sobre minha altura quando nos conhecemos que desencadeou todo meu mau humor. Dá até um deja vu.
Me encolho no banco e aliso o braço.
— Não gosto que falem da minha altura. — digo, firme. Cavalcanti solta um "Ah" afetado. — Se quer ser minha amiga. Precisa saber disso.
Isso não quer dizer que concordo com esse lance de amizade. Ainda acho uma ideia péssima, mas pelo menos agora sei que ela tá prestando atenção.
— Ok, tudo bem. Não vou esquecer.
Concordo com um aceno.
— Você... Quer me contar o porquê? — pergunta baixinho e então senta de frente pra mim.
Não no banco do outro lado, mas em cima da mesa.
Dou de ombros, desconfortável.
— Só não gosto e pronto. — respondo, ríspida.
Eleanor morde a unha do polegar e solta um "Tá bom".
— Eu não gosto do meu sorriso. — confessa.
Arregalo os olhos surpresa.
— Como assim? O seu sorriso é...
Lindo. Fenomenal. A coisa mais fofa que eu já vi na vida!
Mordo a língua pra não deixar escapar nenhuma bobagem.
— Tá bom. Vou lembrar. — respondo em vez disso.
A menor solta uma risada curta e então estica o mindinho para mim.
Bufo impaciente e antes de enlaçar nossos dedos confirmo se não tem ninguém prestando atenção.
Não quero rumores estranhos.
— Não preciso mais cumprir desafio então? — forço um sorriso pra ver se amolece o coração dela.
Eleanor dá um peteleco no meu nariz como resposta.
— Claro que precisa. E o desafio é por você, não por mim.
Franzo a testa.
— Como assim?
— Você se sente mal por ter sido ruim comigo, por isso não quer ser minha amiga agora. O desafio é um pedido de desculpas. Se você cumprir não tem porquê não sermos amigas. — explica, convicta.
Abro e fecho a boca, sem saber o que dizer.
É uma lógica tão... Besta e de algum jeito muito a cara dela, mesmo que eu não a conheça o bastante pra ter certeza.
— Já tenho muitos amigos. Não preciso de mais não. — rebato por instinto.
Sem aviso prévio Eleanor puxa seu braço e como ainda estamos com os mindinhos juntos eu acabo indo para frente.
— Você mente mal pra caramba Jô. — sussurra.
Minha única reação é gaguejar e piscar como uma idiota. Fico em choque pelo fato dela estar tão perto.
Dá distância em que estamos seria capaz de contar todas suas sardas.
— Seu cu. — digo sem pensar, odiando me ver refletida na lente do óculos dela.
Tenho a péssima mania de xingar quando me faltam argumentos.
Eleanor ri pelo nariz e sua franja se move um pouco. Ela aperta meu dedo com força, me impedindo de sair de perto.
— Promete que vai cumprir meu desafio? Qualquer que seja?
— Tá. — resmungo, só pra ela me solte logo, mas Eleanor não se dá por satisfeita. Reviro os olhos. — Prometo. Pronto? Satisfeita?
Cavalcanti murmura um "Hunrum", solta minha mão e finalmente se afasta, pulando da mesa.
Quase que no mesmo momento a sirene da escola toca.
Merda, preciso voltar pra sala e nem terminei de lanchar.
Embrulho o cachorro quente que sobrou nos guardanapos que Eleanor me trouxe e também levanto, seguindo a outra pelos corredores enquanto ela fala sem parar da tarefa de casada da próxima aula.
Respondo às suas perguntas sem muita emoção, dividida entre equilibrar o cachorro quente e responder as mensagens de Ludmila.
Não quero que ela note que tem algo de errado.
[Lud linda: nenhuma chance de você vir depois que acabar as aulas?]
[tenho trabalh e já faltei swxta]
[inclusive vcs me devem ums noite d filmesss]
Saio do aplicativo de mensagens assim que a barra de notificação mostra que Kaique enviou algo na nossa conversa.
E bem a tempo, pois por bem pouco não esbarro em algum pirralho do sexto ano fazendo carreira.
— Jesus! — solto, erguendo o braço pra não derrubar o cachorro quente.
— Presta atenção Manuel! — briga Eleanor.
O menino olha por cima do ombro sem parar de correr e berra um pedido de desculpas pra nós, mas o sorriso no seu rosto deixa bem claro que ele não está de fato arrependido.
Mais duas crianças passam pela gente como se fossem velocistas profissionais.
— Como cê sabe o nome dele?
— A gente mora no mesmo prédio. — ela responde, cutucando a gola da sua jaqueta.
Ela parece desconfortável e não é pra pouco.
Hoje, como quase todos os dias, está fazendo um calor do cão. A sensação térmica em Cassiopeia costuma se manter entre trinta e quatro ou trinta e cinco — chegando a quarenta facinho no verão — e ela não é daqui, então sua resistência a quentura muito provavelmente é menor.
Logo, se eu sinto como se fosse derreter, ela provavelmente está num estado pior.
— Cê não tá com calor? Pode tirar a jaqueta, não vou falar pra ninguém que a garota nova descolada não aguenta o mormaço de Cassiopeia. — zombo, sorrindo de canto.
Eleanor olha por cima do ombro para mim e franze o nariz, como se nem tivesse notado que está pingando de suor. Fico em dúvida se ela só está se fingindo de durona ou não.
— Hum... É. — ela responde categoricamente, esticando os ombros para trás e tirando sua jaqueta. — Me sinto meio esquisita sem ela, sabe? É tipo minha segunda pele. — brinca.
Solto um "Hanram", tentando não prestar atenção demais em como a camisa de gola que tem escrito "Pré-universitário" nas costas fica nela. É a primeira vez desde que nos conhecemos que vejo Cavalcanti sem o falso couro.
E por seu cabelo estar preso, consigo identificar perfeitamente a tatuagem alada atrás da sua orelha.
— Uma borboleta? — deixo escapar, um pouco alto demais.
Instintivamente Eleanor toca o local da tatuagem e olha pra mim, sorrindo.
— Uma libélula. Sabia que elas enxergam em trezentos e sessenta e que as asas batem cinquenta vezes por segundo? — conta, empolgada.
— Uau isso é...
O resto da frase se perde quando noto quem está na nossa sala, sentada na cadeira da professora.
— Bom dia meninas. Podemos conversar? — pergunta dona Magali, a diretora do colégio.
Fodeu.
RESPIRO fundo com dificuldade, pontos pretos escurecem minha visão e acho que só não desmaio porque já estou sentada.
— Calma Jô, ninguém vai descobrir. Ela prometeu que não ia contar, lembra? — é o que Eleanor repete pela quinta vez, tentando me acalmar.
Ainda com o coração batucando nos meus ouvidos, finalmente tenho fôlego para responder:
— Mas todo mundo sabe que eu vim pra aula! — Bom. Em teoria só Lud e Kaique sabem, mas quem garante que eles não comentaram com o resto da turma? — E também ela podia estar mentindo...
Eleanor apoia as mãos na cintura e olha pro nada por um momento, refletindo.
— Você acha? Eu não sou boa em saber essas coisas. — ela roe a unha do polegar. — Eita merda, tá sangrando... — choraminga, sacudindo a mão no ar para afastar a dor.
Fecho os olhos e inclino o corpo para frente, escondendo meu rosto nos joelhos.
Isso é um desastre. Eu estou completamente ferrada.
Não acredito que não consegui me segurar e falei pra diretora — A DIRETORA — que toda a turma tá matando aula na Praia da Baleia. Ela nem chegou a nos ameaçar ou coisa assim, mas eu sou péssima sob pressão.
Sempre falo sem parar de nervosismo e quando dou por mim é tarde demais pra fechar a boca.
— Eu estraguei tudo. Todo mundo vai me odiar e eu vou ser expulsa da formatura!
E o pior é que eu tenho que ir trabalhar, nunca foi tão injusto não poder voltar para casa, me trancar no quarto e chorar até cair no sono.
— Aproveitando que tu tocou no assunto da formatura, sabe me dizer se... — levanto o rosto e olho feio para ela, numa mensagem clara de mau humor. — Hã, deixa pra lá. Pergunto a Lud depois. — fala Cavalcanti, esfregando as mãos contra a calça.
Solto um resmungo sem sentido e observo o estacionamento, tentando criar coragem pra levantar.
Poucos carros, quase nenhuma bicicleta, uma ou duas motos aqui e acolá. Muitas folhas amarelas no chão de cimento, quase todas são do pé de jambo que Eleanor queria que eu escalasse. Não é uma árvore tão alta, mas prefiro não arriscar.
Além disso, nem tá na época de dar fruta.
Pelo menos já estou vestindo o uniforme do trabalho, lembro e aliso minha calça — ela é preta e de lã.
O uniforme também conta com uma camisa de mangas longas, que dobrei até os cotovelos, uma gravata borboleta e o colete vermelho com a plaquinha onde tem meu primeiro nome.
Em teoria o caminho até o Mar Profundo, o cinema onde trabalho, demora uns dez minutos partindo da escola. Mas isso porque Kaique sempre me dá carona.
A pé certamente demora mais — principalmente com essa mochila pesada nas costas, cheia de livros e roupa — e agora me sinto muito burra por não ter trazido minha bicicleta.
— Ótimo, vou chegar atrasada. — resmungo, finalmente ficando de pé.
Dou algumas batidinhas na minha bunda, torcendo para que seja o suficiente pra tirar a sujeira da minha calça.
— Em casa? — Eleanor pergunta, curiosa.
— No cinema. Trabalho lá.
— Ah, se quiser eu posso dar uma carona! Fica no meu caminho pra casa.
Ela fala com tanta empolgação que deixa meu humor pior ainda. Queria eu ir pra casa e almoçar a comida do meu pai em vez de me contentar com um mísero cachorro quente frio.
A sua proposta é bem tentadora, mas não parece boa ideia.
Junto as sobrancelhas, lembrando de um detalhe muito importante.
— Peraí um segundo... A sua moto não tá quebrada?
Eleanor arregala os olhos de leve e abre a boca, sem saber o que falar.
— Hã...
Cruzo os braços e mordo o lábio inferior, segurando um sorriso.
Ora ora, quem diria...
— Ellie... Eu não acredito! Você mentiu pro professor! — zombo.
Eu não dou a mínima, até porque já inventei um monte de coisas pra não perder a aula também. É uma besteira, mas a forma como ela fica encabulada por ter sido pega é muito engraçado.
— Você... — a mais baixa aperta a barra da própria camisa. Seus ombros estão tensos e seus olhos focados nos próprios pés. — Vai contar?
Pisco, me obrigando a sair do estado de choque por presenciar Eleanor Cavalcanti constrangida.
Faço um sinal de desdém com a mão e acrescento:
— Você guarda meu segredo e eu guardo o seu. Fechado?
Sei que ela já disse que não vai contar pra ninguém que sou lésbica, mas não quero que fique muito na cara que estou sendo boazinha só porque me deu vontade.
— Fechado! E aí? Aceita a carona? — ela arquei as sobrancelhas pra mim.
— Ih... Não sei não. E se alguém me reconhecer? — digo, colocando a bolsa nas costas. — Se minha mãe descobre que eu peguei carona com quem não tem carteira de motorista come meu fígado!
Sem falar que a gente pode ir presa se trombar com a polícia.
Beleza que a chance de acontecer isso é mínima. Aqui em Cassiopeia é difícil ver uma viatura, pois o crime mais recorrente são roubo de plantas chiques e frutas, mas ainda sim...
— Mas cê já andou comigo, lembra? — Eleanor sorri, convencida. — Sabe que sou boa dirigindo.
— Sim e esse é outro segredo nosso. Um que vamos levar pro túmulo. — rebato, apontando o indicador pra menor.
Cavalcanti revira os olhos e chuta minha perna de leve, implicante.
— Qualé Jô, deixa de frescura. Te levo num instante até lá, juro que evito as ruas mais movimentadas!
Confiro a hora no celular e por falta de opção melhor — e juízo — acabo aceitando.
Eleanor bate palmas pra comemorar e sai na frente, dando pulinhos até onde estacionou sua mobilete.
De dia é mais fácil identificar o tom de azul do veículo, algo que lembra o céu. O banco está coberto por uma redinha e no guidão tem um capacete pendurado.
Ele é amarelo, tem uma viseira pequena, linhas pretas nas laterais e uma estrela grandona de cada lado.
Quando Eleanor abre a correia e se vira pra mim acho que ela vai me entregar o objeto — do mesmo jeito que fez na madrugada da festa —, então estico a mão. Mas, para a minha surpresa, ela chega bem perto e tira meus óculos antes de encaixar o objeto na minha cabeça.
— Vou guardar pra não cair. Te entrego quando a gente chegar lá. — explica, piscando com um olho só.
Confusa e com o coração acelerado, observo enquanto ela guarda meu óculos dentro de um bolso interno na sua jaqueta e troca o seu próprio óculos por um outro — maior e que me lembra aquele filme antigo de aviação..
Ela bota sua mochila na frente do corpo e tira do bolso a chave da moto. Cavalcanti senta no banco, apruma a mobilete e tira o descanso, depois encaixa a chave no lugar e olha pra mim.
Porque ela parece tão charmosa com essa jaqueta de couro besta e essa motoca fueba de repente? Que estranho...
— Vamo, sobe aí. — diz, batendo no espaço atrás de si.

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