Engulo em seco e a obedeço, ignorando os pensamentos bobos na minha mente.
Posiciono bem os pés nos apoios e aperto o bagageiro atrás de mim com força.
Cavalcanti testa o motor e o escape faz aquele barulho irritante que tanto detesto, o cheiro de gasolina invade meu nariz e eu não consigo evitar uma careta.
— Segura em mim! Não quero que sua mãe acabe comigo porque deixei a filha dela se estabacar no asfalto! — é o que a outra menina diz antes de agarrar um dos meus braços e o passa pela sua cintura.
Imito o gesto com o outro braço, mais insegura ainda depois dessa brincadeira — e super consciente das minhas mãos nas laterais do seu corpo.
— Se você me derrubar eu mesma acabo contigo! — alerto.
Em resposta Eleanor apenas ri e então acelera, guiando a mobilete para fora do estacionamento da escola.
Não que eu vá admitir, mas é até divertido andar na garupa, principalmente quando a condutora é bem menor do que eu. Consigo ver a pista à nossa frente sem dificuldade, os olhos sempre atentos a cada pessoa na calçada, temendo que seja algum vizinho.
Eleanor manobra bem a mobilete, não vai acima da velocidade permitida e reduz nas curvas e quando passamos por alguma lombada. E ela de fato cumpre sua promessa; nada de avenidas ou ruas movimentadas, seguimos por becos e ruelas que não conheço bem, mas confio que seja o caminho certo já que ela não hesita nenhuma vez.
Oito minutos depois — de acordo com meu celular — Eleanor estaciona na frente do velho cinema e desliga a mobilete.
— Valeu. — agradeço, ao descer.
Toco a trava do capacete, mas ao não conseguir soltá-la rápido, acabo chamando a atenção dela.
— Peraí. — a menor ri e apoia o descanso no chão antes de subir na calçada pra me ajudar. Com um movimento simples ela solta a correia e tira o capacete com cuidado. — Foi mal pelo seu cabelo, capacetes. Sabe como é.
Abro a boca pra dizer que não sei não, já que essa é a segunda vez que ando de moto na vida, mas perco a linha de raciocínio quando seus dedos raspam na ponta da minha orelha ao tentarem por um cacho rebelde de volta no lugar.
Fico tentada a rir ao notar que mesmo que eu esteja com os joelhos dobrados, ela precisa se esticar na ponta dos pés pra tocar meu cabelo.
— Argh, desisto. — Eleanor bufa, finalmente se afastando.
Ela apoia o capacete no banco da moto e tira sua mochila dos ombros para pegar meu óculos dentro da jaqueta.
Coloco a mão na testa, tentando proteger a visão do sol escaldante de Cassiopeia.
Não sei como ela consegue sair por aí usando uma peça de roupa tão quente sem derreter de suor. Eu mesma só sobrevivo aos expedientes no cinema porque tem ar-condicionado lá dentro.
— Fecha o olho.
Antes que eu obedeça, Eleanor põe o óculos de armação redonda de volta no meu rosto, empurrando-a contra meu nariz com o indicador. Franzo as sobrancelhas e encaro sua unha roída e pintada de preto fosco.
Por nenhuma razão, a menina solta uma risada e então abaixa a mão.
A perto as alças da minha mochila e tenciono o maxilar.
— Valeu a...
Minha voz é abafada pelo som de um motor pedindo por socorro.
Viro o corpo na direção do barulho e não me surpreendo ao ver meu colega de trabalho chegando na sua Brasília laranja, o pobre carro se engasga e sofre para alcançar a vaga.
Felipe desce da Brasília aos tropeços e xingando bastante. Sua camisa está amarrotada e ele só passou o colete por um dos braços. Em vez do sapato preto padrão que somos obrigados a usar, está calçando um all star azul e traz uma resma de papel debaixo de um dos braços.
Assim que me vê acena e bate a porta do carro com tanta força que tomo um susto — e mesmo assim ele precisa de outras duas tentativas antes da porta fechar.
— Oi AJ! — ele ri, enquanto termina de vestir o colete e se aproxima de nós. — E Eleanor?
— Ellie. — corrije Cavalcanti.
Talvez eu deva parar de me referir a ela pelo nome todo na minha mente?
— Ops! Foi mal. — Felipe sorri e passa as mãos no cabelo, penteando os cachos pesados para trás. — Ah, aproveitando que cê tá aqui vou te dar um... — ele faz um pequeno suspense enquanto puxa um dos papéis e entrega a ela. — Desses. Seria bem legal se você fosse, vai ter lanche.
Olho descaradamente por cima do ombro de Ellie para ler o panfleto que ele deu.
Pelo que noto provavelmente foi feito a mão e então xerocado... No centro do papel há um desenho de uma casa, que rapidamente reconheço como o casarão da rua Robalo — uma construção bem velha e que todo mundo diz ser mal assombrada —, tem fantasmas e morcegos escapando das janelas do segundo andar e uma frase meio derretida mais no topo.
Acho que era pra imitar aqueles títulos de filmes de terror em que as letras meio que estão sangrando.
— "Você gosta de filmes de terror?" — Cavalcanti lê em voz alta, mas sem a entonação certa. Desvio os olhos pra Felipe que está sorrindo e mostrando os polegares. Ellie começa a ler o texto maior, que está em letras simples, abaixo da casa mal assombrada. — "Se sua resposta foi sim, Você devia aparecer na nossa reunião. Estamos procurando pessoas para participar da produção de Abduzidos no Além! Todes são bem vindes!"
Olho pra Felipe de novo.
— Hã... Você vai fazer um filme?
— Isso! Bom, não só eu... Drika, Pê e Yago também tão na equipe. — o garoto explica, mexendo os ombros. — Mas ainda precisamos de pessoal, tanto pra atuar como pra ajudar nos bastidores. E aí? Topam?
— Eu-
— Estaremos lá! — Cavalcanti me interrompe e eu arregalo os olhos pra ela. — As duas. — reforça, passando o braço por dentro do meu.
Mas que porra?
Felipe comemora e avisa que vai entrar primeiro porque quer espalhar alguns cartazes no saguão. Forço um sorriso e aviso que só vou me despedir de Eleanor antes.
Assim que ele atravessa a porta de vidro me solto da menina negra ao meu lado e apoio as mãos na cintura.
— Como assim "nós"!?
— Ué, parece divertido... Cê não acha?
Sim, afinal de contas sou uma fã de carteirinha de filmes de terror, além de que o local de encontro é justo no casarão. Eu sou doida pra ir lá desde piveta e... Não importa! Isso está fora de cogitação.
Não tenho nada contra Felipe — ou seus amigos — trabalhamos juntos faz tempo e ele é legal, sempre simpático e falante. Temos filmes favoritos em comum e cobrimos um ao outro em caso de faltas em cima da hora, mas fora do Mar Profundo não trocamos um "A".
Principalmente na escola.
Ele faz parte de uma panelinha meio excluída da turma. E não é de agora, as coisas são assim há anos. Se eu der até mesmo um "Bom dia" na sala pra ele, vai bagunçar a ordem das coisas.
Pode arruinar tudo.
Mas claro que Eleanor não entende nada disso, porque ela é de fora.
Respiro bem fundo e conto até quatro antes de falar:
— Não, não acho. — bufo e aperto as alças da minha mochila, ajeitando os ombros. — Agora, eu tenho que ir trabalhar. Então tchau.
Giro nos calcanhares e começo a caminhar em direção a entrada do cinema, listando todas as minhas obrigações de hoje.
— Ei, Jô!
Paro meio passo antes de alcançar a porta de vidro, pensando se vale a pena ou se é melhor fingir que não ouvi.
Acabo cedendo e olho por cima do ombro.
— O quê?!
Cavalcanti continua ali parada na calçada, com sua jaqueta jeans idiota, sorrindo enquanto sacode o panfleto no ar.
— Te desafio a ir à reunião comigo! — diz, esticando o braço e apontando pra mim com o dedo mindinho levantado.
Eu devia ter previsto algo do tipo, bem feito pra mim.

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