Não sei o que falar, sinceramente.
— Também. Hã... AJ, eu só queria pedir desculpa de novo por aquele lance com a... — ele força uma tosse e coça a garganta. Seu rosto está vermelho de vergonha. — Enfim. Eu não fiz de propósito, sabe?
— Você não tirou as roupas da Tatiane de propósito? — debocho e arqueio uma sobrancelha.
Admito que o constrangimento dele me diverte um pouco, bem pouquinho.
Kaique se engasga e balbucia umas coisas sem sentido enquanto troca a marcha.
— A gente tava muito bêbado. Eu e ela no caso... Foi até melhor cê ter aparecido e atrapalhado.
— Hã. Tendi... — solto o ar pelo nariz e viro o rosto para a janela de novo. — Como eu disse. Não é da minha conta.
Chega desse assunto logo de manhã cedo, vai estragar minha quinta feira.
— E-eu sei! É só... Que se eu estivesse batendo bem da cabeça na hora, nunca que ia ficar com uma mina que trata minha melhor amiga mal!
Abaixo os ombros, relaxando a postura um pouco.
Fecho os olhos, pensando no que dizer.
É óbvio que Kaique tá se sentindo péssimo e isso mostra como ele sabe que me magoou... Não tem porque tratá-lo com indiferença. Odeio ficar brigada com meus amigos, é desgastante demais.
— Tá tudo bem Kaique. Sérião. — olho para ele e dou outro sorriso, agora aliviado. Ele me deu o que eu queria, nada mais justo de eu dar o que ele precisa. — Tá perdoado. — acrescento, para que não restem dúvidas.
Alcântara retribui meu sorriso, mostrando a covinha na sua bochecha direita. Olho para ele, tipo realmente olho para ele. Absorvendo cada detalhe daquele rosto que eu cresci vendo e mesmo assim ainda me surpreende com a mudança da puberdade.
Kaique agora tem uma barba rala que ele sempre precisa aparar, seus olhos azuis se tornaram mais opacos à medida que crescemos, o cabelo castanho escuro que por anos foi mantido num corte "tigelinha" agora segue um padrão mais moderno, com as laterais raspadas e um desenho aleatório na nuca. Seus ombros mais largos por causa da natação e os braços queimados de sol cheios de músculos.
Se eu o desafiasse pra uma queda de braço como fazíamos na infância, perderia feio agora.
— Crianças perdidas pra sempre? — o mais velho levanta a mão direita e estica seu dedo mindinho.
Engulo em seco ao lembrar de Eleanor.
— Crianças perdidas pra sempre. — confirmo, rindo ao me recordar de como começamos com essa brincadeira boba.
As lembranças do que provavelmente foi meu melhor verão na vida se expandem na minha cabeça, deixando um rastro de risadas, gostos e cheiros que não necessariamente esqueci, mas que mantenho submersos. Pelo meu próprio bem.
Mas a memória de mim e Kaique correndo para lá e pra cá brincando de Peter Pan é tranquila e segura o bastante, então não a afasto.
Quando soltamos as mãos e eu saio do transe, percebo que a rua na qual estamos não faz parte do caminho de sempre em direção a escola.
— AJ, cê pode ir pro banco de trás?
A voz grave dele me tira do mundo da lua.
— Oi? — digo confusa, tirando a mão do colar no meu pescoço.
Estou sempre brincando com o pingente de estrela do mar dele, me trás um conforto inconsciente.
Kaique franze a testa e aponta para a casa com muro amarelo à minha direita. Sigo seu indicador e avisto Diego — colega de equipe do Kaique — abrindo o portão.
— O Diego fica meio enjoado em carros. — explica.
Solto um "Ah" constrangido e tiro meu sinto.
Não sei por qual motivo de repente ele quer carona pro Diego Ramos, mas não pergunto nada porque sinto que nem vale a pena. Deve ser só hoje mesmo.
Quando abro a porta pra descer do Jeep quase acerto ela em Diego. Ele está de boné e óculos escuros, mas sinto seu olhar penetrante mesmo assim.
— Mal aí. — digo, desviando e abrindo a porta de trás.
O menino de cabelo cacheado murmura alguma coisa que não entendo e então senta ao lado de Kaique, fechando a porta com cuidado pra não fazer barulho.
— E ai, como foi ontem? — ri meu amigo, numa piada interna.
Diego mostra o dedo do meio pra ele e encosta a testa no vidro da janela. Acho que está morrendo de sono ou com ressaca.
Coloco o cinto bem quando Kaique arranca com o carro de novo. Acho que estamos atrasados porque ele fica conferindo a hora sem parar no celular em seu colo.
Pego meu celular pra matar o tempo — já que provavelmente não rola de conversar pra não incomodar Diego — e fico vendo vídeos fofos de casais sáficos no Tik Tok.
Minha paz, no entanto, dura pouco, pois a próxima parada é bem na rua onde Pedro Lucas e Pedro Augusto moram.
Num segundo estou rindo pro meu celular e no outro o insuportável do Pedro Lucas tá batendo no vidro da janela pra me assustar. E antes que eu possa reagir, estou no banco do meio, espremida por dois brutamontes que não calam a boca um segundo.
Tento me ajeitar melhor no assento, mas é impossível porque ambos estão com as pernas abertas, ocupando todo o espaço.
Mal educados.
— Égua meu, bota aí uma música melhor! Fica ouvindo essa música de fresco, virou boiola foi? — diz Lucas, se esticando para mudar a estação de rádio.
Ele me empurra contra Pedro Augusto sem nem pedir licença, que ri dos seus comentários homofóbicos como se sua vida dependesse disso.
Olho para Kaique pelo espelho e ele me fita de volta com intensidade — um pedido de desculpas com sobrancelhas franzidas — antes de voltar a encarar a estrada.
Me surpreendo quando ele também ri do que Pedro Lucas diz.
Diego é o único que reclama, mas só por causa do barulho.
— Fica quieto aí caralho. — fala, batendo na mão de Lucas e voltando pra estação anterior.
É uma rádio local chamada Cinquenta e Dois Hertz e que repete a mesma playlist por semanas a fio. A maioria das músicas nem passa perto do meu Spotify, mas... Pra toda regra tem uma exceção.
Reconheço que é Maldivas tocando antes mesmo da Ludmila começar a cantar — talvez porque eu tenha ouvido umas cinquenta vezes nos meus momentos mais carentes...
Meu Deus eu sou uma lésbica emocionada mesmo.
— E... Qual é Diego virou fã de Anitta agora? — brinca Pedro Lucas.
Kaique dá uma risada fraca, meio forçada.
— Ludmila. — corrige Pedro Augusto.
— E tem diferença? Só calem a boca por dois segundos... — sussurra Diego.
Lucas volta a se sentar, mas não bota o cinto e de algum jeito ocupa ainda mais espaço no banco quando se vira pra falar com o amigo.
— Hã... Essa é aquela que virou sapatão? — Kaique entra na conversa do pior jeito possível.
Meu coração despenca até o estômago e eu sinto um gosto amargo na língua.
De repente o carro parece ter diminuído de tamanho, sinto como se todo o ar dos meus pulmões simplesmente sumisse e o fato do braço de Lucas estar encostando no meu me faz querer pular pela janela.
Engulo em seco e respiro fundo uma vez, contando até quatro.
— Ela na verdade é bissex-
— SÉRIO!? Meu, que desperdício! — Lucas interrompe Pedro Augusto. — Aposto que nunca ficou com homem de verdade. Dez minutinhos comigo e ó. Mudava de ideia. — gargalha, fazendo um gesto obsceno com as mãos e o quadril.
Meus olhos, meus olhos! Preciso de uma garrafa de água sanitária urgente. E quer saber? Em vez de pular, vou arremessar esse menino babaca pela janela.
— Meu Deus vei, olha a boca! Esqueceu que tem uma mina no carro? — Diego se irrita se ajeitando no banco.
Acho que ele já notou que é impossível dormir com o Pedro Lucas presente.
— Ah, é. Mal aí AJ, cê não ficou chateada não né? — diz com um tom de voz que não condiz com o pedido de desculpas.
Minha língua parece pesar quase uma tonelada, as palavras se embolando na garganta.
— Hã...
Antes que eu possa dizer qualquer coisa, Pedro Lucas passa o braço pelos meus ombros, me puxando para perto e continua:
— Se não fosse a maldição eu até te pegava, sacou?
Sinto meu rosto arder e o empurro imediatamente, fazendo com que ele se choque contra a porta.
— Vai se foder Pedro Lucas.
Mas ele não me leva a sério e começa a rir.
Minha mente fica embaralhada com a cacofonia da música no rádio, o trânsito lá fora e as vozes dos meninos, todas ao mesmo tempo, tentando se sobressair, mas no fim deixam tudo mais confuso.
— Pedro. Se comporta senão eu vou te pôr pra fora do carro. — Kaique dá o ultimato.
Pedro Lucas levanta as mãos e finge uma expressão inocente.
— Tá bem, tá bem capitão... Não queria ferir seu ego.
Me encolho o máximo que dá pra longe de Lucas, mesmo sabendo que agora Augusto está espremido contra a porta à sua esquerda. Mas é isso ou realmente me atirar desse maldito carro.
Sinto uma raiva desenfreada, misturada com angústia e nojo. Acho que nunca mais vou conseguir ouvir Maldivas sem lembrar desse momento horrível.
Fecho os olhos, me concentrando em respirar e rezando para que a escola esteja perto.
É só hoje, repito pra mim mesma, nunca mais vou dividir carona com Pedro Lucas na vida... E aí lembro que agora sento bem atrás dele na sala.
— Ei, talvez se você pedir com jeitinho pro capitão, ele te dê um-
— Chega Lucas. Pula fora! — Kaique fala, autoritário.
O carro dá um solavanco quando ele pisa no freio com tudo. Sou jogada para frente mesmo estando de cinto e mordo minha língua sem querer.
Pedro Lucas bufa bravo e abre a porta. Ele solta um monte de palavrões e se gaba por nem precisar andar muito até o colégio, já que estávamos entrando na rua.
Aproveito e saio também, me sentindo meio claustrofóbica de repente, mesmo com os protestos do meu melhor amigo.
— AJ! Volta por favor! — ele implora, colocando a cabeça para fora da sua janela.
Eu apenas ignoro e continuo andando, fingindo que os alunos por perto não estão me encarando. Vou para a calçada oposta a que Pedro Lucas escolheu e entro pelo estacionamento em vez de ir até o portão principal.
Tiro o fone da bolsa e conecto ao celular, colocando a música no último volume.
Respiro fundo e esfrego a mão contra os olhos, me repreendendo pelas lágrimas.
— Meu Deus, chega! Você não pode entrar na aula chorando assim. — falo em voz alta pra mim mesma.
— Ô, tudo bem aí coração?
Ah, pronto. Era o que me faltava.
Passo o antebraço no rosto e fungo antes de me virar e encarar Eleanor.
— Tudo bem sim. — respondo com a voz embargada.
Mas mantenho a pose de indiferença e apesar de estar com uma expressão interessada, não insiste.
— Hum, Ok. — sussurra me dando uma última olhada antes de se concentrar em limpar o espelho da sua lata velha.
Estreito os olhos, prestando atenção em cada detalhe; os coturnos, a calça amarela — que já tem um buraco no joelho direito —, a jaqueta de couro de mentira cheia de patches, o cabelo caindo em cachos perfeitos pelas costas, o batom preto e os piercings.
Ela é tão... Tão... TÃO.
Bufo inconscientemente, sem conseguir disfarçar minha raiva. E claro que a menor percebe.
Eleanor se vira um pouco e inclina a cabeça, me olhando por cima dos seus óculos escuros de armação vermelha e formato de coração. Tão brega.
— Algum problema Jô?
Seu tom é cauteloso e é meio estranho que ela não esteja sorrindo como de costume. Tem sido assim desde segunda, depois que ela decidiu seu desafio — ainda não decidi se vou e estou brava comigo mesma por não escolher a resposta sensata que é dizer não pra ela.
Sei que passei um tempão estressada querendo que ela largasse do meu pé e me desse espaço, mas não estou lidando bem com essa versão de Cavalcanti.
Troco o peso do corpo de um pé para outro.
Foda-se vou perguntar porque ela tá esquisita.
— Na verdade, sim. — Ellie arqueia as sobrancelhas, esperando. — Você...
Antes que eu possa terminar a frase, escuto uma buzina e levo um baita susto.
Sinto as mãos de Eleanor na minha cintura e no meu pulso, me puxando para longe antes de um carro passar. Numa velocidade bem acima do ideal para se locomover num estacionamento, devo ressaltar.
Chio com raiva e xingo o motorista desconhecido baixinho.
— Você dizia? — a menor pergunta, inclinando a cabeça e me olhando com atenção.
Abaixo o rosto para ela, fazendo uma careta, meu rosto quente de vergonha.
Ótimo, agora pareço uma idiota.
— Você... — sibilo.
Respiro fundo, tomando um susto ao sentir os dedos dela pesando na minha cintura e marcando meu uniforme.
O cheiro do seu perfume cítrico invade meu nariz, me deixando levemente nauseada.
— Eu... — repete, os olhos grandes e atentos.
Estalo a língua, tão irritada que não consigo nem formular uma frase.
Nessas horas odeio ser uma lésbica destrambelhada que fica burra perto de garotas.
Mesmo que a garota em questão seja Eleanor.
Não que ela não seja bonita. É óbvio que ela é, mas ela claramente não faz meu tipo. Prefiro meninas mais quietas, meio misteriosas, que usem tons mais alegres e que tenham gostos em comum comigo.
Eleanor não é nenhuma dessas coisas.
E ainda por cima me causou um problemão, pois agora que Felipe pensa que vou aparecer na reuniãozinha dele, não para de tagarelar sobre isso.
Não aguento mais ter que opinar como se de fato me importasse e fosse aparecer — e será pior depois que passar o dia, vai pintar um climão esquisito. Tenho certeza.
Lá se foram minhas folgas extras.
Solto o ar pelo nariz e abaixo o rosto para olhar Cavalcanti melhor. Por estarmos tão perto e ela ser incrivelmente pequena, vê-la desse ângulo é engraçado e pra não rir, opto por ficar quieta.
Apenas a encaro bem feio e torço que isso seja o bastante pra ela entender que tô puta.
— Que quê vocês tão fazendo? — A voz de Ludmila finalmente faz meu corpo reagir.
Empurro Eleanor de leve e dou dois passos para trás. Recuperando meu espaço pessoal.
Forço uma tosse e então olho para minha melhor amiga, que está na beirada da calçada nos encarando com uma curiosidade intimidadora.
— Salvei a Jô de ser atropelada. — explica.
— Eu ia caindo e Eleanor me ajudou. — minto, nossas palavras se mesclando.
Cavalcanti me olha com um bico enorme, cruzando os braços, mas eu finjo que não ligo pro seu incômodo.
Ela me apunhalou pelas costas, não quero mais ser sua amiga e nem pretendo passar a impressão errada.
Lud franze a testa, confusa e me encara. A observo de volta, reparando em como o short de educação física dela parece ainda menor do que na semana passada, mal chegando ao final das suas coxas fartas.
Suas unhas enormes estão pintadas de lilás e ela caprichou na maquiagem, o que significa que acordou cedo o bastante para se arrumar com calma. As mechas coloridas do seu cabelo crespo também foram retocadas e quando ela se aproxima, reparo nas marquinhas que o biquíni deixou na sua pele escura.
Aposto que foi pra praia de novo ontem.
— Tá, tanto faz! Esqueci de fazer a tarefa de casa da primeira aula. Me empresta? — pede, puxando a barra da minha camisa.
— Ok, mas são vinte e cinco questões de física. Certeza que consegue copiar tudo até a professora chegar? — comento, enquanto deixo minha melhor amiga me puxar para dentro da escola.
Ela passa o braço por dentro do meu e encosta a cabeça no meu braço.
— AJ eu copiei um resumo de quinze páginas frente e verso de ti pra aula de história uma vez. Em dez minutos! Sou praticamente uma máquina de cola! — frisa.
— Tão tá...
Olho por instinto uma vez só na direção de Eleanor e sou pega no flagra.
Ela já está no nosso encalço, caminhando à minha direita com sua mochila preta pendurada num único ombro, os sapatos de plataforma se arrastando no piso e as pulseiras tintilando no pulso.
A menor me mostra a língua numa implicância boba e sorri.

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