Bato os pés no chão com força, numa birra inútil que eu sei que não vai dar em nada. Se eu pedir pro pai intervir ele não vai saber o que fazer e se falar pra mãe ela vai ficar do lado da Alice porque critica tudo que eu gosto, incluindo meus filmes favoritos.
Então eu só reúno minhas coisas que estavam largadas no sofá e vou pro meu quarto.
Se não estivesse com um monte de coisa nas mãos, bateria a porta com força para efeito dramático...
— Sua palavra contra a minha nhenhenhen — resmungo imitando a voz chata e enjoada de Alice. — Vem pedir dinheiro emprestado de novo pra ver o que eu vou falar.
Coloco o notebook na mesa de estudos e então me viro, indo até minha janela.
Como meu quarto fica no fundo da casa, ninguém se deu o trabalho de por uma grade — coisa de cidade pequena — e eu dou graças a Deus por isso.
A única visão que tenho é a do matagal do quintal e um muro super alto com cacos de vidro, ainda sim gosto muito de me sentar no parapeito quando tô num momento de reflexão ou tristeza.
Abro as persianas de madeira e me sento, deixando uma das pernas suspensas no ar.
Boto os fones de novo e agora com o celular na mão, mudo de playlist. Enquanto Requim Chagrim toca, abro o Twitter.
Desde quinta que não respondo a coitada da Sol.
Leio cada mensagem cuidadosamente e nossa, são muitas. No começo ela escreve um monte de coisas confusas, mas nas duas últimas tem mais de cinco linhas em cada e quando termino de ler a última frase, estou boquiaberta. Totalmente em choque.
Estralo os polegares e começo a digitar.
A primeira conversa que tive com a Sol sobre algo sem ser Horror Drama Club foi porque ela viu um tuite meu em que eu falava o quanto estava chateada com minha mãe. Acontece que Sol também não tem uma relação muito boa com a mãe dela e nós ficamos até de madrugada falando sobre isso.
Fomos nos aproximando mais com o tempo, confiando uma na outra e desabafando sobre problemas pessoais até que um dia me vi contando pra ela sobre Monique e sobre como é cansativo e dolorido ficar no armário.
Mesmo sendo — talvez não mais — hétero, Sol me dá todo o apoio que preciso, ri dos meus surtos lésbicos, me ouve choramingar sobre meus casais e fanfics favoritos e eu faço o mesmo por ela em relação aos garotos péssimos com quem ela se envolve as vezes.
Rio sozinha pensando que se tudo o que Sol escreveu é verdade, o dedo podre dela pra meninos faz bastante sentido.
[eu sempre admirei mulheres muito mais que homens]
[na vida real, em séries, filmes...]
[mas acho que só me dei conta de que era lésbica]
[quando vi duas mulheres se beijando pela primeira vez]
[meu cérebro meio que deu um estalo e]
[percebi que era aquilo que eu queria]
[não sei se faz sentido]
[e desculpa de novo pelo sumiço]
[roooi]
[tudo bem quase n entrei aqui desde aquele dia. Muita coisa rolando]
[é que eu tava feito doida tentando achar o tt de uma menina]
[sua crush?]
[nãoooo outra]
[tenho algo urgente pra falar com ela]
[mas não tenho o número]
[quer ajuda? sou boa stalkeando]
[e preciso de uma distração]
[meu mundo virou de cabeça pra baixo]
[sei que pareço uma babaca]
[mas não tá sendo um mar de rosas perceber que]
[não gosto de garotos]
[tudo bem]
[vc n é babaca]
[essas coisas são dificeis de lidar]
[as vezes eu ainda tento me forçar a achar]
[um ator bonito]
[ou me idealizar indo num encontro com um cara]
[só pela possibilidade disso deixar minha mãe feliz]
[puta merda]
[nem quero pensar na minha mãe]
[se ela descobrir me mata]
[a gente podia fugir juntas]
Jogo a possibilidade como se fosse brincadeira, mas na verdade penso nisso várias vezes ao dia, numa frequência alarmante.
[siiiim pique getway car!]
[fugir pra alguma cidade de interior]
[viver do que a terra nos dá]
Reviro os olhos para a referência a Taylor Swift. Não odeio a cantora nem nada, só sinto que existem artistas que me representam bem mais e cujas músicas me tocam o coração.
[eca]
[vou pegar meu spray anti-swifter]
[cala a boca kkkkk]
[sei que vc me ama]
Mordo a unha do polegar, em dúvida se devo ou não perguntar algo pra Sol. Pode ser invasivo, mas é uma curiosidade que surgiu assim que li as mensagens anteriores dela.
[sol se n for invasivo]
[pode me responder algo?]
[claro dory]
[vc já ficou com vários caras antes]
[o que foi diferente dessa vez?]
[o que te fez se dar conta?]
[eu meio que]
[sempre me senti mal. Depois de beijar algum garoto, nas vezes que namorei também. No início tudo era novo e empolgante, mas aí com o tempo eu começava a me sentir sufocada]
[então sei lá porque]
[botei na cabeça que isso era por estar com o cara errado]
[sempre pensei que ia ser diferente quando conseguisse o menino perfeito entende?]
[sei]
[no caso aquele garoto que vc gostava na infância?]
[é]
[ai teve a festa. Nós ficamos e eu não senti nada do que achei que ia sentir]
[agora chega de depressao e de coisas pra baixo]
[passa o nome da mina que se quer stalkear]
[vou bancar o fbi]
[KAKKSKDK]
[n quero stalkear ningueeem]
[Eleanor o nome dela]
[já tentei twitter tktk insta tumblr telegram até o facebook e o youtube mano]
[mds kkkkk]
[e quem usa tumblr? tão 2013]
[pra vc ver meu desespero]
[é faltou só o letterboxd kkkk mas isso se]
[ela for nerdola que nem vc]
Aperto a letra k várias vezes, mas não envio a mensagem. Em vez disso, saio do aplicativo e clico no ícone com três pontinhos coloridos.
Não custa nada.
Digito o nome e o sobrenome, mas as pessoas que aparecem tem sua foto real no perfil e nenhuma delas é ela, então me dá um estalo e em vez do primeiro nome coloco o apelido.
E como num passe de mágica lá está Ellie. Seu perfil é o primeiro na lista de pesquisa e para minha sorte ela usa uma foto real dela mesma. O sorriso de lábios fechados e os olhos enormes me encaram de volta, como se dissessem "Ei idiota, porque demorou tanto?"
Bufo desacreditada com minha própria sorte e entro no seu perfil. Ela tem um monte de listas, mas como tenho pressa não me atento muito nisso.
Vou para suas últimas atividades e clico na resenha que ela fez de Soulmate — um filme coreano muito lindo.
Meu dedo paira sobre a opção de comentar, esperando meus olhos terminarem de ler o que ela escreveu.
A música no meu fone termina e Amour plastique começa, como a trilha sonora desse momento desconcertante.
— Meu Deus, não acredito nisso. — rio descrente.
O motivo? Simples; Eleanor deu três estrelas pra um dos meus filmes favoritos sob a justificativa de que não tem final feliz. Depois disso, nem preciso dizer como a vontade de fazer um comentário extenso de porque a opinião dela não vale nada me corrói.
Mas não o faço. Me limito ao que realmente importa e escrevo:
"nem todas as histórias precisam de finais felizes para passar a mensagem Eleanor!
p.s: é a AJ, se ler isso por favor manda um email pra cá! precisamos conversar! Urgente!!!"
E de novo essas malditas exclamações.
Talvez eu seja mesmo uma desesperada, reflito, rindo para o nada.

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