(Inspirado na música "The Village" por Wrabel)
Os rumores que correm pela vila dizem haver algo de errado comigo. Eu não consigo deixar de concordar. Nunca me senti sendo eu mesma. Parecia que eu era a personagem secundária da minha própria vida. Com algo que controlasse cada passo, cada escolha, cada momento. Não me sentia pertencente da minha vida, corpo ou mente. Tudo parecia mesmo meio errado, como se eu nem devesse estar aqui, como se eu não encaixasse em lugar algum, principalmente na vila. Tudo parecia cinza e sem vida.
Olho para o espelho, encarando o corpo a minha frente. Pego a bandagem e enrolo em volta de mim. Volto meu olhar ao espelho novamente, respiro fundo retirando o tecido elástico do corpo. Visto-me com uma blusa um pouco apertada e um casaco largo. Antes de deixar o banheiro, meu pai entra e vê a bandagem na pia, a pega jogando longe, e mandando eu sair logo dali. Dói.
Tudo precisava ser do jeito deles: acordar e por uma maquiagem para ir para escola. Manter meu cabelo longo bem hidratado e jamais cortá-lo. Um pouco mais de rosa nas roupas fariam bem. Uma saia para melhorar tudo. Pelo menos, eram o que me diziam, que era tudo uma fase e eu superaria. Ainda assim, parecia tão errado.
De segunda a sexta eu via os olhares tortos direcionados a mim. Até o jantar de sexta, tudo parecia corroer-me por dentro. Os julgamentos, os olhares, os comentários maldosos, tudo me matava um pouco. Eu tentava de tudo para me encaixar, até pintar minha unha e tentar ficar bonita.
Tudo era em vão. Nada parava isso tudo.
Os sábados eram meus dias de folga. Sem precisar ver ninguém, podendo ser quem sou. Mas os domingos, ah os domingos, era o próprio inferno. Dia de arcar com meus ditos pecados. Dia de deixar de ser uma jovem perdida pecadora. E nas segundas tudo voltava ao normal, com boatos, com olhares que julgam até a alma dos que se portam diferente.
Diferentes. Esse é o problema, não é? Não ser uma cópia do que julgam ser o certo te faz diferente, e isso é ameaçador, então te atacam, com medo que você os ataque antes.
O pior de tudo é não ter ninguém ali com você, porque sua mãe não entende, seu pai não entende e muito menos o seu tio John. Não é bom falar com a vovó sobre isso porque ela é velha e pode não aguentar, você não quer causar a morte da própria vó. E eu simplesmente não tinha ninguém. Estava sozinho. Sem saber para onde ir ou o que fazer.
Eles não entendem, mas como todos os outros, te julgam, rebaixam, até ameaçam para que você fique na linha. Na linha deles. E se você entortar, lá se vai sua sanidade, sua paz. Todo o horror começa. Eu estava nessa fase. Minhas roupas estavam ficando masculinas demais para eles. E a maquiagem vinha diminuindo e os comentários e julgamentos só aumentavam, estava quase me acostumando.
Foi pensando nisso que parei de vez com a maquiagem. Foi por isso que cortei meu cabelo e passei a usar só aquilo que me agradava.
Nada poderia deixar-me mais bonito que ser eu mesmo. O corpo era meu de novo. Minha mente já não era mais controlada por ninguém; menos ainda por comentários de terceiros.
Andar pelos corredores da escola, sendo eu mesmo, foi assustador no início. Obvio que tiveram muitos olhares, mas aquilo já não importava mais. E, além disso, eu já não estava mais só, eu tinha pessoas comigo. Pessoas que entendiam exatamente o que eu sentia, pessoas que desistiram de se esconderem e se aceitaram.
Então nada mais importava. Não quando tudo que eu sentia era paz, e alívio. Não quando tudo que eu via, quando olhava no espelho era perfeito, era quem eu era. Eu via cores e vida correndo em mim. Pois não tinha nada de errado comigo. E não importa se estão encarando. Não importa se não me entendem. Só importa o que eu sou. Só importa tudo estando certo agora.
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