Ele está no canto da lousa, com as mãos na cintura e observando a turma, na espera de uma resposta.
Alguns respondem sua pergunta dizendo que sim, mas outros pedem mais alguns minutos.
Nervosa, pego meu caderno e abro na matéria dele, copiando o mais rápido que consigo.
Sou sugada pela aula e acabo deixando o bilhete de Monique de lado. São tantas coisas pra copiar, atividades pra fazer, conteúdo pra aprender.
O fato de eu estar no fundão também não ajuda, pois mesmo de óculos preciso apertar os olhos pra entender a letra de alguns dos professores e quando não é isso, é o maldito pincel falhando.
Sem falar no puto do Pedro Lucas conversando com Pedro Augusto sem parar.
Tudo isso junto meio que eleva meu nível de estresse em duzentos por cento, assim, quando a sirene toca e nós somos liberados pro intervalo, ponho meus fones, pego meu lanche e saio da sala sem esperar ninguém.
Vou direto para a fila da cantina, torcendo pra que ainda dê tempo de conseguir um suco de morango.
São tantas pessoas se empurrando e tentando furar a fila que chego a ficar zonza, mas com insistência consigo entregar o dinheiro a uma das tias e pegar o suco com meu sabor favorito.
Um pouco mais calma, giro o corpo e procuro pelos meus amigos. Como de costume, eles estão reunidos numa das mesas de cimento, bem ao lado da grade que cerca a quadra.
Assim que me aproximo o bastante, noto que Ludmila e Monique estão conversando e ergo as sobrancelhas, intrigada.
Não que elas nunca se falem, afinal fazemos parte da mesma panelinha, mas... Têm algo de diferente no modo como riem e cochicham.
Monique sussurra alguma coisa próximo ao ouvido de Lud, dando um dos seus sorrisos charmosos. Ludmila solta o ar pelo nariz e se inclina na direção dela, chocando seus ombros.
Fico desconcertada com a intimidade delas, os toques e os olhares cúmplices.
Será que perdi algo?
— Jô! — A voz de Eleanor estoura minha bolha de pensamentos esquisitos.
Me aproximo mais da mesa e inclino a cabeça, finalmente reparando na menina de jaqueta de couro, sentada a esquerda de Ludmila.
Ela sorri e franze o nariz, acenando pra que eu me aproxime.
Que porra tá acontecendo?
Ainda meio confusa, dou a volta na mesa e sento no outro banco, onde Raquel e Diego estão.
— Oi AJ. — a menina branca me cumprimenta.
— Oi... — respondo, sem muito interesse em começar uma conversa.
Raquel é mais amiga da Lud do que minha, além de ser prima de Tatiane. Ela é até ok, nunca me tratou mal, mas também não temos muito em comum então nos limitamos a falar sobre coisas da escola e só.
Dito e feito, pois quando eu tiro o lacre do meu suco e me concentro na minha comida, a outra já perde o interesse e volta a conversar com Diego.
Aproveito isso para encarar as três meninas sentadas de frente pra mim.
Ludmila e Monique ainda estão grudadas, mas agora elas ao menos tentam incluir Eleanor na conversa.
Tiro um dos fones pra escutar melhor o que estão dizendo e ver se consigo participar.
— Aula de campo? — ouço Cavalcanti questionar.
— Isso. A prof de biologia sempre gosta de levar a gente pra Praia do Coral por causa dos ovos de tartaruga que costumam eclodir nessa época do ano. — Monique explica.
— A gente ajuda a limpar a praia e depois ficamos por lá até as tartaruguinhas nascerem. É bem legal. — completa Ludmila.
— Sério? Que legal. — Eleanor responde, de forma meio blasé.
Estranho a atitude, mas por não saber como me incluir na conversa delas, só destampo meu pote e dou a primeira garfada no bolo de chocolate que meu pai fez.
Ao mesmo tempo que a menina de franja e sardas põe sua lancheira em cima da mesa, num baque surdo.
Estreito os olhos, reconhecendo o bonequinho estampado no tecido preto.
Kuromi.
Eleanor tem uma lancheira da Kuromi e não só isso — como ela expõe assim que abre o zíper —, mas também uma tigela preta com o rosto da personagem estampado bem grande. Um daqueles potes com várias divisórias pra separar os alimentos.
— Quer? — Cavalcanti me oferece seu lanche quando percebe que estou encarando demais.
Me inclino para olhar o que ela trouxe por pura curiosidade, mesmo que eu não vá aceitar.
Um misto quente cortado em dois triângulos, uvas e M&M.
Ela simplesmente separou um punhado de chocolate M&M por cor na tapué.
É tão... Imprevisível e ao mesmo tempo tão... Ela.
Assim como a jaqueta preta por cima do pijama e os óculos com armação de coração no topo da cabeça e as pantufas do Pingu.
Meu Deus Ellie.
— Não, valeu. Não gosto de M&M. — minto.
Tipo, não é meu doce favorito do mundo, mas eu até como, quando usado em decoração em outras coisas.
— E vocês? Querem? — ela pergunta para as outras pessoas na mesa.
Raquel recusa, mas Ludmila, Diego e Monique aceitam.
Continuo comendo em silêncio enquanto observo todos eles interagindo normalmente, como se tudo o que rolou semana passada fosse apenas um delírio.
Lud e Eleanor estão avidamente discutindo como a cor do chocolate afeta o gosto — minha amiga defende que os vermelhos são melhores, enquanto Cavalcanti diz que são os laranjas — e eu só fico ali, as encarando que nem uma idiota.
Será que Eleanor conversou com ela? Isso quer dizer que tá tudo bem então?
Ainda com a mente pipocando de perguntas, percebo quando Monique tenta chamar minha atenção, chutando minha canela por baixo da mesa.
Olho para ela e então lembro do bilhete inacabado na minha mesa.
A garota ruiva saca o celular do bolso e bate de leve nele com o indicador, depois abaixa o olhar e digita algo.
Quase que instantaneamente o som de notificação ecoa no meu fone, interrompendo a música que está tocando — cuja letra nem lembro mais.
Equilibro o garfo e o pote com uma mão, enquanto com a outra, pego o celular e desbloqueio a tela.
Quase não consigo evitar arregalar os olhos quando o nome dela aparece na minha barra de notificação.
Apesar de eu ter seu número salvo por causa do grupo da turma, nunca conversamos no privado.
[Monique Roux🥐: descobri a fofoca]
[que fofoca????]
[Monique Roux🥐: Ellie e Lud??]
[a!!!]
Eu e essas malditas exclamações, merda.
Levanto o olhar para Monique quando a escuto soltar uma risadinha.
[Monique Roux🥐: éééé]
[Monique Roux🥐: a!!!]
Sinto minhas orelhas queimarem de vergonha.
Ela tá zombando de mim?
[desculpa por não devolver o bilhete]
[me esqueci]
[Monique Roux🥐: tudo bem fkkdfkdf]
[Monique Roux🥐: o importante é a fofoca]
O importante é a fofoca...
Então Monique só... Puxou conversa comigo porque queria saber se as meninas estavam mesmo brigadas?
Sinto meu coração murchar um pouquinho, mas ainda preciso entender direito o que rolou entre Lud e Eleanor.
[é kk]
[mas e aí... o que rolou enquanto eu ia na cantina?]
[Monique Roux🥐: nada]
[Monique Roux🥐: cheguei e elas já estavam de boa]
[Monique Roux🥐: masss de acordo com minhas fontes parece que elas conversaram hoje cedo. Antes do hino]
Franzo a testa.
Isso não faz sentido... Assim que chegou Eleanor veio me procurar e depois, na fila, ela tava quase morrendo pra falar um "a" pra Lud. Então quando!?
[sério???]
Levanto olhar para Monique mais uma vez, mas ela permanece concentrada no celular, digitando.
Seguro um suspiro quando um vinco se forma na sua testa e ela assopra uma mecha de cabelo para tirá-la de cima dos olhos.
Tão bonita que chega a doer.
[Monique Roux🥐: vai ver já se resolveram]
Bufo e faço um bico, depois digito:
[deve ser]
Monique visualiza, mas não responde mais nada, então eu olho para ela outra vez, só para pegá-la me encarando de volta.
Seu rosto fica levemente vermelho e pela sua expressão noto que está envergonhada por ser pega no flagra.
Sorrio de canto e penso que talvez deva oferecer um pouco de bolo, assim ela não precisa ficar desconfortável.
Não me incomodo que olhe pra mim, na verdade. Eu sou capaz de qualquer coisa por um pouquinho da sua atenção.
— Que que cê acha AJ?
Que ela é a garota mais linda do mundo e... Não, peraí.
Pisco, saindo do transe.
— Hã, quê, oi? — desvio o olhar de Monique e encaro Ludmila.
— Qual M&M é melhor. — agora quem fala é Eleanor.
— Sei lá... Mas o verde definitivamente é o pior. Tem gosto de sabão. — dou de ombros.
No mesmo instante todo mundo — até Raquel e Diego que teoricamente estão na sua própria bolha — soltam exclamações, concordando comigo.
Bom, quase todo mundo.
— Eu gosto dos verdes. — admite Monique, passando a mão pelo cabelo.
Quero dizer alguma coisa esperta, mas estou meio abismada por ela admitir isso e também completamente boba pelo quão fofa ela está com seu pijama estampado com desenhos do Snoopy.
— Você é esquisita. Eca. — É o que sai da minha boca antes que eu tenha tempo de pensar.
Tenho vontade de tacar a testa na mesa no mesmo instante, principalmente quando noto o Monique corar mais ainda e endireitar a postura.
Ela abre e fecha a boca, surpresa com meu comentário e eu só a encaro de volta feito uma jumenta. Tão sem reação quanto.
— Desculpa eu...
Não chego a terminar a frase, pois fico em choque quando Monique se inclina sobre a mesa, rouba o garfo da minha mão e pega um pedaço do meu bolo. E ainda por cima mostra a língua pra mim, como se tivesse vencido uma discussão super difícil com o melhor argumento.
Quando ela me devolve o talher, tenho a provocação perfeita na ponta da língua, mas não uso, pois algo me distrai.
Num instante estou concentrada na cara fofa de Monique e no outro alguém põe a mão sobre meus olhos, deixando tudo escuro.
Por instinto levanto minha própria mão, tateando a que cobre meu rosto.
Escuto uma risadinha contida, é tão baixinha que quase passa despercebida em meio à barulheira do recreio, mas eu escuto essa risada há anos e sei bem a quem pertence.
Kaique solta um grunhido de dor quando estico meus braços para trás e belisco suas bochechas.
— Aí! Aninha! — ele tira a mão de cima dos meus olhos.
Giro o corpo e dou outro beliscão nele — uma punição por usar um apelido que não gosto —, agora na barriga. O que se torna um processo difícil porque o menino praticamente não tem gordura na região para ser apertada.
Ainda rindo, meu melhor amigo escapa de mim e se enfia entre eu e Raquel, sentando em cima da mesa de pedra.
— Nossa, como você é má!
— E você um chato! — provoco, mesmo ciente do sorriso bobo nos meus lábios. Empurro o pote de bolo pra ele e então desenrolo um papel toalha com uma colher que estava do lado da minha garrafa de suco. — Toma, meu pai botou um pedaço extra pra ti. — concluo, entregando a colher na sua mão.
O garoto branco esfrega as mãos uma contra a outra e aceita o lanche sem nem pestanejar, afinal ele é um esfomeado.
— Oba!
Gargalho ao vê-lo soltar suspiros apaixonados enquanto come, mas minha alegria só dura até Raquel comentar:
— Meu Deus! Vocês são tão fofos que chega a dar dor de barriga.
À medida que nossos outros amigos vão concordando com ela, sinto toda a felicidade pós-bolo se esvair de mim.
— Me lembrem de novo porque vocês ainda não oficializaram o namoro?
— Diego. — Kaique repreende, empurrando o outro no peito.
Mas ele não parece irritado de verdade, seu tom de voz seria diferente se estivesse e isso faz com que Diego continue com a brincadeira. Agora ele e Raquel estão meio que nos "imitando" — ou imitando como nós dois parecemos quando simplesmente agimos feito bons amigos.
Só dois bons amigos. É isso que somos, porque ninguém aceita?
Tomo o pote de bolo da mão de Kaique e volto a comer, uma tentativa de me evitar mandar todo mundo tomar no cu e parar de encher a porra do meu saco.
Ao levar o garfo a boca, lembro que há poucos minutos que Monique fez o mesmo.
Isso conta como beijo?
Ainda pensando sobre, deixo meus olhos vagarem para ela, que está com os cotovelos apoiados na mesa. A ruiva ri baixinho quando Ludmila implica sobre não aguentar mais segurar vela pra mim e Kaique, mas noto quando ela tenciona os lábios e franze as sobrancelhas, desconfortável.
E em seguida me pega a encarando.
Diferente do que normalmente eu faria, mantenho o contato visual e dou outra garfada no bolo. Quase instantaneamente, suas íris se focam na minha boca.
— Que cê acha Ellie, eles não seriam um casal fofo?
Quebro o contato com Monique para revirar os olhos.
Amo Ludmila, mas queria que ela largasse do meu pé sobre isso. Nem lembro mais quantas vezes falei pra minha melhor amiga que as chances de eu ficar com Kaique são as mesmas do One Direction voltar.
— Ai Lud, chega. — chio baixinho, fervendo de raiva.
— Definitivamente não. — Eleanor responde ao mesmo instante.
A conversa morre de repente, mas não me importo com os olhares dos meus amigos, minha concentração está na menina de jaqueta de couro.
Eleanor me olha de volta e com uma piscadinha, fecha seu pote — vazio, já que ela acabou de lanchar — o colocando de volta na lancheira preta.
— Vou no banheiro. Jô, vem comigo?
E assim ela pega suas coisas e se levanta.
— Hum, t-tá.
Ainda meio nervosa, entrego o resto do bolo ao meu melhor amigo — que permanece tão abismado quando os outros — e agarro a garrafa de suco pela metade antes de ir atrás da menor.
Não ouso olhar para trás nenhuma vez enquanto sigo Eleanor até o banheiro.
Não ouso olhar para trás nenhuma vez enquanto sigo Eleanor até o banheiro.
Minha cabeça está meio bagunçada por causa do que rolou a pouco com Monique e também por causa do jeito que Ellie me defendeu.
Com uma única frase ela calou todo mundo na mesa! Foi foda, tenho que admitir.
— Hã... Obrigada por dizer aquilo. — falo, assim que empurro a porta do banheiro feminino.
Cavalcanti caminha até o balcão e me olha pelo espelho, sorrindo de canto.
— Tudo bem. Sei como essas coisas são chatas. — ela deixa sua lancheira próxima a uma das pias e se estica pra alcançar a máquina de sabonete líquido. — Você não acha que... Seria melhor contar? Pelo menos tu não ia precisar mais ter que ouvir essas baboseiras.
Solto uma risada baixa, achando engraçadinho o jeito dela falar — meio brava, o que deixa o sotaque mais evidente. — e me aproximo do balcão também.
Não sei se tem mais alguém aqui, então é melhor falar baixo.
Cruzo os braços e me encosto no mármore, de costas para o espelho.
Observo Eleanor enxaguar as mãos e tirar o batom preto de dentro da jaqueta. Ela o destampa e apoia uma das mãos na borda da bancada, enquanto a outra passa o produto no lábio inferior.
— E se eu falar e eles me excluírem? Não quero ficar sozinha até o fim do ano. Só falta esse. — mexo os ombros como quem diz "tanto faz".
Quer dizer, se eu aguentei até aqui... Não pode ser tão ruim esperar mais um pouco. Só até eu começar a faculdade e sair dessa bolha que é Cassiopeia.
Mal termino de falar e ela vira o rosto, me encarando.
— Tu não ia ficar só. Tem eu, oxe! — rebate.
Não consigo levá-la a sério. Só não sei se é porque ela fala tudo com tanta convicção e honestidade que faz eu me sentir esquisita ou porque tá com o canto da boca borrada de batom.
— Tá sujo aqui. — digo, tocando meu próprio rosto bem onde está sujo, no canto da boca. — Quer dizer então que não preciso mais cumprir seu desafio bobo?
Depois que achei a conta dela no Letterboxd, trocamos alguns emails. Eu cumpri o que prometi pro Felipe e avisei a ela que a reunião sobre o tal filme tinha sido cancelada.

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