A madeira escura da escada rangia sob meus pés a cada movimento. Cada som, por menor que fosse, parecia ecoar pela casa silenciosa, então me movi devagar, com a respiração presa no peito, tentando fazer o mínimo de barulho possível. A luz azulada que emanava da sala tingia as sombras ao meu redor, criando formas estranhas que se alongavam nas paredes.
Meu coração batia forte, e eu podia senti-lo pulsando enquanto descia o primeiro degrau. Parei, agachado, e espiei por entre as grades da escada. Minha mãe estava imóvel, seu rosto levemente iluminado pela luz azul que pulsava suavemente, como o brilho de uma estrela distante. O que quer que ela estivesse segurando, era pequeno e brilhava intensamente, refletindo uma luz que parecia viva, quase líquida.
Fiquei onde estava, observando-a em silêncio. Ela estava de lado para mim, mas havia algo na rigidez de sua postura que me deixou inquieto. Como ela segurava o objeto, com as mãos firmes, mas, ao mesmo tempo, delicadas, indicava que aquilo era importante.
Desci mais um degrau, rangendo levemente. Prendi a respiração, esperando que ela não tivesse ouvido. Meu olhar estava fixo nela, tentando decifrar o que eu estava testemunhando. A luz azulada parecia piscar no objeto, quase como se tivesse uma vida própria, pulsando em sincronia.
Outro passo. O chão abaixo do meu pé gemeu, um som abafado que soou alto demais na quietude da noite. Minha mãe se mexeu levemente, os ombros tensionados por um segundo, e eu congelei. Segurei o ar nos pulmões, com os olhos estáticos nela, esperando qualquer sinal de que ela estava prestes a se virar para me esconder. Mas ela não se moveu mais, retomando o foco no objeto à sua frente.
Com cuidado, desci mais um degrau, agora num nível intermediário, numa plataforma, andei agachado até chegar a cerca de 5 metros dela, olhando-a de cima ainda.
A visão ficou mais clara; consegui ver que o objeto era aquele item escrito com um símbolo que indentifiquei como 'Euler'. Ele parecia piscar em um código em uma língua diferente.
Eu queria ver mais de perto, mas sabia que precisava ser cauteloso. Um movimento em falso, e todo o meu esforço para me aproximar em silêncio teria sido em vão e eu seria arbitrariamente posto para dormir novamente e não entenderia o que ela está fazendo.
Desci o último degrau e me esgueirei ao longo da parede, as tábuas ásperas da madeira roçando contra minha mão. Estava perto o suficiente para ouvir sua respiração lenta e controlada.
Eu continuei espiando enquanto minha mãe, ainda absorta no que fazia, colocou o objeto na mesa. De onde estava, pude ver que o item, antes pequeno e discreto, começou a se expandir, revelando-se muito mais do que aparentava. O que parecia ser uma tela preta começou a se abrir, sua forma se estendendo além dos limites, cobrindo toda a mesa, como se não estivessem confinadas pelas leis normais do espaço, se expandindo assustadoramente, tomando dez vezes o seu tamanho normal.
O que quer que fosse aquilo, definitivamente não era algo comum, o livro que outrora me deu tantos questionamentos sobre sua natureza se mostrou um… mapa?
O objeto se desdobrou completamente, cobrindo toda a mesa com um holograma azul brilhante sobre si.
Um mapa, o mapa começou a se aproximar, retraindo sua espiral vasta de pontos luminosos que parecia um mapa astral até focar num único ponto. As luzes lentamente se rearranjaram, formando contornos detalhados da superfície de Áurea, que então sinalizo para uma região específica a oeste de Florem.
Eu estava paralisado, quase hipnotizado pela visão. Nunca havia visto algo assim. As estruturas no mapa pareciam ser marcas antigas, talvez precursoras de algo mais grandioso, espalhadas por todo o globo, várias das torres negras. Fiquei fascinado, querendo entender o que aquilo tudo é.
Minha mãe começou a falar, mas as palavras saíram tão baixas que mal pude ouvir. Ela estava conversando com alguém? Mas não havia ninguém ali além de nós dois. Fiquei ainda mais inquieto. O som suave de sua voz, como um murmúrio, me fez querer me aproximar mais, mas a verdade é que chegar mais perto corria o risco de ser pego em flagrante.
Foi então que um pequeno cubo emergiu do holograma. Ele se moveu lentamente, piscando um pontinho vermelho em um padrão que parecia seguir algum tipo de lógica, algo que eu não conseguia decifrar. O cubo parecia quase vivo, e o modo como piscava me deu a estranha sensação de que ele estava consciente da sua presença.
De repente, o cubo girou em minha direção. Eu congelei, segurando o fôlego, e por um instante, tive a nítida impressão de que ele estava me observando. O pontinho vermelho mudou e piscou em azul escuro, quase como um olho que me encarava. Meus músculos ficaram tensos, mas era preferível apenas observar como reagiria. O cubo se virou novamente para o mapa, e a tensão aliviou um pouco, embora o medo dele me denunciar persistisse.
O holograma ampliou, focando na região onde estávamos. O cubo traçou uma trilha de pontinhos vermelhos pelo mapa, levando até uma torre negra distante, em Gaélia, nosso continente, a aproximadamente 1500 quilômetros de distância. No topo dessa torre, uma pequena bolinha vermelha piscava como uma espécie de sinal.
Minha mãe, ainda encarando o holograma, franziu a testa e perguntou, em voz baixa: “Por que eu deveria ir lá?”
Eu quase não acreditei no que ouvi. Ir para onde? O cubo piscou novamente, desta vez em um padrão mais complexo, como se estivesse tentando responder à pergunta dela. Parecia que os dois estavam tendo uma conversa, mas em uma linguagem que eu não conseguia entender.
Então, ouvi sua voz se elevar, cheia de frustração e cansaço. “Eu já disse, estou confortável cuidando da minha família aqui,” falou com firmeza. “Procurei por muito tempo o que me permitisse achar uma maneira de acessar uma honraria do governante em Áurea, explorando e enfrentando cada desafio do complexo, e nunca encontrei nada.”
Ela fez uma pausa, seus dedos tamborilando sobre a superfície da mesa. “E agora, do nada, você entra em contato dizendo que sabe onde está? Não, obrigada. Nem sei quem está falando pelo Honraria de Euler…” Ela hesitou, olhando o cubo com desconfiança. “Como espera que eu saia numa jornada para outro país sem garantia de que a honraria esteja lá? Finalmente, quem está falando?”
O cubo, que antes estava imóvel no holograma, começou a piscar novamente, insistente. O pontinho vermelho que ele emitia parecia pulsar em um ritmo quase urgente, como se estivesse tentando comunicar algo importante, algo que minha mãe parecia ouvir atentamente. Ele girava levemente, movendo-se de um lado para o outro no mapa projetado, como se estivesse demonstrando sua determinação em convencê-la.
Ela cruzou os braços, ainda resistindo, mas o cubo continuou piscando, agora mais rápido, sua luz refletindo no rosto de minha mãe. Eu podia sentir a tensão no ar, uma batalha silenciosa de argumentos, provavelmente.
Finalmente, ela suspirou, um som pesado e resignado. “Você quer que eu vá até essa torre, a mais de mil quilômetros daqui, para procurar algo que nem tenho certeza se está lá. E o que mais? Você vai ficar insistindo até eu ceder?”
O cubo respondeu com um piscar calmo. Ela hesitou, seus olhos fixos no pequeno objeto. Eu podia ver a luta interna em seu rosto, o conflito entre sua responsabilidade como mãe e a atração misteriosa que aquela missão parecia exercer sobre ela eram claras na sua face.
Eu estava imóvel, quase esqueci de respirar, enquanto aguardava seu próximo movimento, sabendo que, de alguma forma, isso mudaria tudo para nós.
“Tudo bem, eu vou.” disse ela com resignação.
O que quer que o cubo tenha dito, convenceu ela. Ele não expirou, continuou piscando, em um ritmo diferente.
“Por quê! Eu tenho que levar minha família. O quê? Como assim isso é uma forma de protegê-los! Não, não! Eu sei, ninguém sabe sobre a Honraria de Áurea ainda. Registro? Me diga seu nome de verdade.
Entendo, sim, ele é muito importante, e se você realmente é de dentro do complexo, então isso tem alta chance de ser verdade. Sei como isso é essencial para todos, e para que ninguém encontre Áurea, afinal, você sabe o que tem lá fora, né? Eu estou disposta a manter esse segredo de todos, pelo bem da minha família, mas, você sabe que para alcançar a honraria do governante, devo passar pelos mais alto testes das estruturas, né? E provavelmente não sou capaz sozinha…
Então você vai me dá-lo pelo nosso bem mútuo? Entendi. Nesse caso… VOU o quanto antes.”
E foi então que o cubo começou a piscar uma última vez.
O mapa se desfez e rapidamente, foi quando a tela preta projetou símbolos estranhos em si, no centro da mesa coberta por ela. Meu corpo reagiu antes que eu pudesse processar o que estava acontecendo; um som escapou da minha boca, um pequeno gemido de desconforto enquanto eu me tremia por completo.
Esses símbolos… eles eram diferentes, eu... podia reconhecer. Linhas curvas e traços se juntavam para formar padrões que não faziam sentido para mim como ser vivo, mas que, de alguma forma, mexiam com algo dentro da minha mente.
Era cosmogenesí.
Uma tontura repentina me atingiu, e o chão pareceu se dissolver sob meus pés. Tentei me firmar, mas era inútil. Os símbolos se moveram diante dos meus olhos, girando e pulsando com uma energia que parecia estar viva.
A visão ao meu redor começou a desaparecer, e em seu lugar, uma escuridão tomou conta de mim. Tudo o que restava eram os símbolos, brilhando intensamente no vazio, e então, sem aviso, fui lançado em uma visão.
"Kiel? você está acordado?"
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Ondas mecânicas emitidas por organismo feminino em processo de degeneração celular.
Não, ondas emitidas por... Protetora.
“Sentado aí de novo? Vê como o espaço é lindo, não é? Sei que um laboratório de pesquisa não é uma casa aconchegante, mas esses conceitos parecem te encantar, não é, pequenino? Conhecer tudo lá fora... eu sei que você quer.
Vamos, diga algo, sei que você já decifrou nossa língua. Deixe essa sua análise do mundo ser mais sensível."
Análise circunstancial: demonstração de afeto de entidade viva.
Análise macrofísica: Grande abertura metálica, com composto de sílica permitindo a entrada de ondas emitidas por grande corpo de alta massa em constante fusão microatômica.
"Sei no que você está pensando, 'criatura amálgama de carbono emitindo ondas em prol do diálogo com criatura cósmica'. Não precisa disso, fofo.
No fundo, você é só uma criança que sabe muito. Fale comigo, pare de olhar para a estrela, faz mal para os olhos. Sei que você acha que deveria estar navegando pela galáxia, mas isso é perigoso no contexto atual. Eu podia te contar sobre a Grande Guerra do Abismo e por que vocês não podem mais viajar sozinhos pelas estrelas, mas isso fica para a hora de dormir."
Iniciando contato.
"Me diga, qual é o nosso propósito? Tenho ordens para levar vida e proteger a criação, incrustadas em minha consciência. Ordens que não preciso seguir, porque são mais como um pedido. Quem pediu isso a mim?"
Voz feminina ressonante: "Esse é um dos mistérios do nosso universo, nem a ciência pode explicar. Eu te salvei, mas te tirei da sua casa, e não me arrependo; o vazio eterno é um lugar deprimente. Como cientista, acredito que tenho um dever, o dever de desvendar o universo e descobrir como tudo começou, de saber de tudo... Esse é o meu propósito, o que provavelmente não vou conseguir, já que vou morrer em meio século.
Você deve escolher o seu também."
Intercedendo:
"Esse também pode ser o meu?"
Voz feminina ressonante interagindo: "Sim, esse pode ser o seu propósito. Está no seu sangue, como uma criatura do vazio. "
Abrindo inseguranças para a Protetora: "Disseram que sentem uma sensação desagradável perto de mim, porque não sou daqui, que faço parte do tal 'Vazio Eterno'. "
Voz feminina protetora: "Não há nada de errado, sua forma me agrada. Só as outras criaturas do vazio podem sentir quevocê não faz parte daqui.
Mas deixemos isso de lado, não sou boa em agradar e sanar inseguranças. Quando perdi minha filha, me senti uma mãe terrível, por não saber como conversar. Não consegui nem me despedir...
Vamos brincar? Ou repolsar num lugar mais acolhedor que um galpão de estoque. Pare de se esconder pela estação, ja estou cansada e velha. Seria revigorante se o mesmo cuidado que tenho com você fosse recíproco."
Iniciando diálogo com Protetora... Posso lhe chamar de mãe? Gostei desse conceito, e quero sentimentos menos solitários.
Voz feminina: "Sim! claro que pode."
concluindo diálogo com Mãe: "Obrigado, mãe."
A realidade voltou a se formar ao meu redor como um turbilhão de cores frias e sons, me tirando do abismo das visões. Meu coração ainda pulsava freneticamente, os ecos daqueles símbolos estranhos ressoando na minha mente. Pisquei algumas vezes, tentando afastar a tontura e me reconectar com o mundo real.
Eu estava deitado no chão frio, com a visão embaçada. Quando meus olhos começaram a focar novamente, vi a figura de minha mãe na minha frente, seu rosto transbordando preocupação.
"Kiel! Kiel, você está bem?" Ela correu até mim, sua voz embargada de ansiedade. Suas mãos me seguraram pelos ombros, ajudando-me a sentar. Eu ainda estava atordoado, e as palavras dela eram como ecos distantes, lutando para atravessar a névoa em minha mente.
"O que aconteceu? Você... você caiu da escada... você ouviu?" O pânico em sua voz era palpável, e seus olhos me examinavam, procurando algum sinal de que eu estava machucado.
Eu assenti devagar, ainda tentando processar tudo o que havia acontecido. "Sim... eu ouvi." Minha voz saiu fraca, como se não fosse realmente minha. Tudo parecia tão irreal, como se eu ainda estivesse preso nas alucinações.
Ela me puxou para um abraço apertado, e eu pude sentir a tensão em seu corpo. E por um momento, fiquei ali, cercado por seu calor, tentando encontrar um ponto de estabilidade em meio ao caos na minha mente.
"Kiel, nós vamos ter que viajar, Algo importante para a mamãe está longe... e eu preciso disso." Afirmou, me soltando lentamente enquanto levantava minha cabeça com bastante carinho, com as mãos na minha bochecha e olhando direto nos meus olhos.
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