O cadeado fora do tempo
Se os seus olhos conseguem inteligir o encadeamento de símbolos neste documento, então quer dizer que eu finalmente deva ter conseguido algum semblante, mesmo que mínimo, de sucesso. As indevassáveis forças que moveram minha alma a conceber este último e desesperado artifício puderam fornecer um breve momento de alívio diante da condenação total, ou, quem sabe, pelo menos a promessa de alívio. Pois, afinal, se estes símbolos aqui podem ser lidos enquanto palavras, e se essas palavras estão sendo capturadas pela sua leitura, isso quer dizer que as sombras foram interrompidas, pelo menos por enquanto.
Por favor, com todas as forças que estas palavras escritas possam ter – e, acredite, nada há de mais poderoso do que esse conluio de signos psíquicos que invade nossa mente através da infecção neurológica que chamamos de ‘linguagem’ – eu imploro que não deixe este documento de lado, nem tão pouco o relegue ao esquecimento de uma leitura futura. Acredite quando digo que o que aqui está encerrado é a razão própria de tudo que possa ter sobrado de certo e correto no mundo; e a única chance que sobrou a nós, animais humanos, de conseguirmos postergar a inevitabilidade do destino. Não posso esconder nada – tudo deve ser, metodicamente, descrito, do contrário a chave será incompleta. Sim, você precisa saber, o quanto antes, da verdade – de toda a absoluta verdade.
Meu nome é Alex Sena. Sou professor da Universidade de Santino, da cadeira de linguística aplicada; especificamente na área da prosódia e da semântica. Devo dizer que sempre acorreu-me o fascínio da significação, os mecanismos elementares do intelecto humano capazes de manufaturar a fantasia da identificação a partir do artifício da palavra. A capacidade estranha de movimentar estruturas ocultas da mente que, quase por magia, conseguem ganhar materialidade concreta através do encadeamento de sons ou gestos. Estes símbolos – propriamente palavras – se desenrolam numa elaborada gama interpretativa que extravasa até mesmo os próprios limites impostos da realidade. Com a palavra, é possível descrever paisagens que olhos jamais viram, elaborar formas e criaturas jamais sustentadas em carne e osso, e atravessar os confins limitantes do tempo e espaço, atingindo consciências a milhares de anos distantes uma da outra.
Movido por esse fascínio da palavra, fundei diversas linhas de pesquisa ao longo de meus muitos anos como professor interino da Universidade de Santino, podendo dizer que alcancei certo renome mesmo fora do insular domínio da linguística. Minhas teorias sobre o processo criativo da linguagem e seus mecanismos de significação tiveram uma considerável aceitação dentro das áreas da neurologia, filosofia, sociologia e, curiosamente, em história e arqueologia.
Mesmo assim, confesso que, num primeiro momento, fiquei bastante curioso quando chegou-me aquele convite formal para que eu apresentasse num simpósio de estudos clássicos na Universidade de Arkham, nos Estados Unidos. Apesar de um tanto deslocado das linhas de pesquisa que eu dirigia na época, devido ao prestígio da instituição e da oportunidade única, resolvi aceitar aquela proposta inusitada. Neste momento, eu jamais poderia prever o peso que tal decisão haveria de ter em minha vida.
Após uma agradável semana de palestras sobre os mais variados assuntos e minha apresentação ocorrer sem grandes tribulações, fui pego de surpresa pela aproximação de um certo doutor Watson Whateley. Um homem de aparência peculiar, para se dizer o mínimo. Além da altura fenomenal, mais lembrando um atleta do que um distinto professor de Arkham, possuía um rosto largo, longo, a fronte tão extensa que os óculos precisavam ter-lhe sido fabricados sob medida. Quando aproximou-se de mim nos corredores escuros da velha universidade após minha bem-sucedida apresentação, presumi inicialmente que me abordava sobretudo um vulto obscuro de pernicioso intento. Somente quando as luzes do corredor iluminaram aquele estranho sorriso de dentes particularmente finos que pude relaxar o pavor instintivo que ameaçava tomar controle de meus nervos.
Em contraste com o prodígio assombroso de seu corpo e aparência, dr. Whateley demonstrava um intelecto arguto e interesses multifacetados. Abordou-me efusivamente, revelando sua área de conhecimento ser a da neuropsicologia. Após os costumeiros cumprimentos aceca de minha apresentação, ele me puxou para um canto, demonstrando interesse particular numa de minhas pesquisas menos divulgadas.
Perguntou-me acerca da hipótese que levantei, tantos anos atrás, sobre a existência de um mecanismo universal de significação codificado na própria arquitetura da psique humana. Ouvi aquela indagação primeiro como uma abordagem cômica, talvez a demonstração do exótico humor dos habitantes de Massachusetts? Todavia, após alguns extensos segundos de distinto e atento silêncio, vi que aquela pergunta fora feita com total seriedade. Desculpei-me com o dr. Whateley, comentando que aquela hipótese havia fracassado em qualquer semblante de comprovação científica. Fora tão somente uma proposta feita em meus primeiros anos dentro da academia, as articulações de uma mente jovem que ainda não dominava os conceitos mais profundos da linguística e, portanto, erroneamente enveredou por caminhos desprovidos de certeza.
Foi com um sorriso repuxado nos lábios que o ilustre senhor recebeu aquela constatação, revelando-me, em seguida, que a hipótese da significação universal talvez não fosse de toda infundada. Então, com muita satisfação, ele retirou da pasta que carregava um punhado de papéis fotocopiados e os deixou em minhas mãos, observando, com bizarra atenção, enquanto eu os folheava.
Num passar rápido dos olhos, imaginei novamente que tudo não passaria, realmente, de uma elaborada brincadeira feita pelos acadêmicos de Arkham com o professor brasileiro convidado. Os papéis continham somente uma consecução de desenhos e caligrafia igualmente absurdos. Traços corredios, de beleza patente mas desprovidos de qualquer semblante de razoabilidade. A escrita lembrava uma mistura do árabe e do sânscrito – ambas de minha alçada do conhecimento – com diversos tracejados circulares e pontos que sobrevoavam, fantasmagóricos, acima de sentenças. Contudo, indo às vias de fato, todo aquele conjunto de papéis não encontrava respaldo em qualquer língua humana conhecida. Para todos os efeitos, não passava de mais um dos códices de mistério, à semelhança do malfadado Manuscrito Voynich.
Porém, conforme meu olhar se deixava correr pelas letras amalgamadas, pelo traço fino que terminava onde a próxima sílaba começava, comecei a ver padrões distintos, delicados, quase como quando, numa pintura simbolista, o efeito da distância provocava uma acepção de significado que, estando próximo, não seria possível de conceber. Mas no caso destas folhas de papel, o fator que parecia conferir significado àquela bizarra escritura era a familiaridade. Quanto mais meus olhos se deixavam perder em suas curvas e pontuações, mais profundamente parecia eclodir, das profundezas da mente, alguma sorte de encadeamento lógico, quase instintivo, que se imprimia na forma de esdrúxulas significações. Sentia impressões fabulosas tomando minha mente de refém, como o distante cheiro de mato verde e novo, o eco da chuva gotejando em folhagens altas, e uma vontade de falar algo que, simplesmente, não podia ser expressado mediante simples palavras.
Fui resgatado dessa viagem interior pela pesada mão do dr. Whateley repousando em meus ombros. Com avidez, perguntou-me se eu havia conseguido decifrar algo daqueles estranhos símbolos e, pasmo, revelei-lhe que sim, que, por mais insólito que parecesse, aqueles signos labirínticos, após um primeiro momento de hesitação, haviam conseguido imprimir as mais absurdas sensações dentro de minha mente. Era precisamente como eu postulara, há tantos anos, quando criei a hipótese da significação universal!
O que procedeu daí se deu de maneira tão rápida que quebrou todos os protocolos precedentes. Através de um acordo entre as instituições, foi acertado que eu iria permanecer durante o semestre na universidade de Arkham como um pesquisador adjunto para poder analisar mais demoradamente aquelas estranhas escrituras. Normalmente, uma requisição de tal feitio demoraria meses de preparação e consentimento de ambas as instituições. Contudo, na passagem de poucos dias, os documentos estavam assinados e eu já tinha meu próprio escritório dentro das paredes de Arkham, com total liberdade e tempo para a pesquisa. A situação era de ansiosa expectativa, uma mescla de tensão e confiança mesmo nos rostos mais austeros da instituição. Afinal, parecíamos estar diante do nascer de uma nova área do conhecimento, que reuniria linguística, neurologia e psicologia. A capacidade de deduzir informações a partir de uma simbologia oculta, gerando conhecimento com os mecanismos instintivos dentro do cérebro humano – um absurdo imponderável, mas que, de alguma forma, parecia assustadoramente próximo de se tornar realidade.
Minhas consequentes tardes seguiram debruçadas sobre livros antigos, procurando pistas que pudessem elucidar como aquele encadeamento particular de símbolos poderia inculcar impressões tão vívidas na mente, mesmo quando não pertencentes a uma língua decifrada pelo leitor. Mas toda teoria pesquisada, toda bibliografia que eu relia, toda escola de pensamento tradicional da linguística não conseguia jogar nova luz sobre a imensa sombra de mistério que repousava sobre aquele texto.
Nem mesmo sua origem era qualquer fonte de certeza – aquela cópia entregue a mim pelo dr. Whateley fora feita de uma fonte que, certamente, não era a original. O texto fora encontrado ao acaso, retirado dos destroços de uma casa antiga, no interior da pequena cidade de Dunwich, em Massachusetts. Por alguma razão, as tentativas de datá-lo não foram bem-sucedidas. O papel – que apresentava marcações específicas que insinuavam que teria sido sido feito após o século XVII – era de algum tipo de mistura única, até mesmo arcaica, que acusava ser mais antigo, talvez até mesmo datando do período medievo, como um dos poucos manuscritos ainda compostos em variantes do papiro egípcio. Contudo, e mais impressionante, era que o texto – na verdade, um conjunto de folhas separadas e recolhidas dentro de uma caixa de madeira protegida por couro – demonstrava sinais óbvios de que fora feito como uma cópia. A forma corrida de caligrafia rebuscada, junto à falta de qualquer traço de correção, denunciava não a escrita criativa de um autor anônimo, mas o olhar atento e escrutinador de um copista.
Exceto por estes dados, absolutamente nada extra poderia ser descoberto sobre a origem do Texto de Dunwich. E, mais aterrador, era perceber que a leitura da fotocópia se mostrava tão boa ou mesmo superior à leitura dos textos resgatados diretamente dos destroços, algo positivamente ilógico! Qualquer filólogo há de constatar que a leitura dos códices originais se mostra melhor do que observar o texto a partir de textos anotados em segunda mão. Porém, naquela estranha situação, meus olhos eram capazes de melhor perceber a cópia do que a fonte!
Como apontado, nenhuma teoria linguística poderia buscar qualquer explicação para tão estranho fenômeno. Mesmo as mais esotéricas das escolas de pensamento da psicologia e as pressuposições de inconscientes coletivos não eram capazes de apontar uma razão contundente para que um texto em uma língua desconhecida pudesse, ainda assim, ser propriamente lido!
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