Tudo começou em uma quente e escura noite, de um setembro distante — com estampa estrelada e negra como o carvão — em que a simpática lua minguante espreitava uma adormecida paisagem. Ao longe, na terra que formava esse distante e místico mundo, repousava um alto e grande castelo de mármore à uma nevoada distância. Tinha altas torres, de tetos pontudos, que regiam de cima uma próspera e adormecida cidade abaixo, cercada de grandes planícies floridas. Eram longos, enormes complexos de rústicas casas e prédios, banhados na escuridão, que rodeavam a grandeza do castelo, estendendo-se numa grande capital cercada em longas muralhas e portões com estandartes. Era lá, na espreita dessa minguante madrugada, e entre os corredores do dito castelo, onde ouviam-se duas curiosas vozes na calada da noite. Elas ecoavam através das rachaduras nos velhos tijolos de mármore, e suspiravam entre os cômodos com grande peso em suas preocupadas palavras, descendo as escadas de um de seus mais altos quartos. Neste, estavam dois homens que com vigor papeavam numa sacada coberta de lâmpadas, todas apagadas, soprando de seus cachimbos requintadas rodelas de fumaça ao que, com pesados fôlegos e uma temerosa ansiedade, proferiam a conversa que prescindia essa aventura:
— Já se decidiu? — caçoava o mais velho. Era um homem com, bem, uma certa idade, e estava trajado num longo manto verde abotoado, vestindo um gorro também verde. Próximo à encosta da sacada, este dava um sádico sorriso de dentes amarelos, que escondia por trás do seu rosto barbado. Parecia perplexo, mas estava contente.
— Ainda mal posso acreditar em tamanha ignorância. — o outro logo o respondeu. Embora tão homem quanto, era mais jovem, um tanto quanto mais jovem. Tinha negros cabelos, vestindo um escuro uniforme; e descansava debruçado entre os cercados pilares da sacada, parecendo exausto e preocupado. — Tem que haver algum engano. Aqueles miseráveis... Depois de todos esses anos, depois daquilo. Como podem ainda insistir em tipos como os deles? Tradições tolas! — ele assim exclamava. Falava de algo, até então, ignoto para nós, mas que a ele fazia sentido, muito sentido, e também lhe dava muita raiva. E que raiva sentia! — Este governo tem ido muito bem na ausência daquela família estúpida. — resmungava mais um pouco, e erguendo seu braço esquerdo deu um farto gole numa garrafa de uma borbulhante bebida. — Por que eu deveria depender deles, hã?
— Tais leis e tradições são tudo o que o mantém em poder agora, caro ministro. — replicava o velho homem, sugestivamente. — Sabe muito bem qual é a posição das terras do além-mar em relação aos países do sul, não sabe? Nunca nos levam a sério.
— O prestígio do meu país não se resume a apenas uma única família, e de origem estrangeira. Isto é ridículo! — respondeu o ministro. — Não é nem metade de uma motivação para um ultimato daqueles. Existem muitos outros homens e mulheres bem mais confiáveis e poderosos vagando por essas terras também. — suspirava ele, apoiando sua mão à cabeça. — Minhas cartas estão sempre à mesa, mas parece que esse jogo não sou eu quem joga. Se tem mesmo de ser assim, então aquele garoto será o meu último às. Não posso danificar ainda mais a nossa imagem no além-mar. Será um sinal de fraqueza.
— Há muito tempo que não vejo o garoto, com certeza. Afinal, era apenas uma criança. — então replicou o velho homem, coçando sua barba. — Embora tenha mesmo ouvido falar sobre um delinquente muito problemático, à sudeste daqui, fora da capital. Vive na velha e infame Lackworth, se não estou enganado, e ouvi dizer que tem uma espada... diferente.
O ministro parou para pensar.
— Lackworth, huh? — disse. — Por mais insignificante que seja, um rato sabe sempre como se esconder. Realmente, se tem um lugar aonde o meu poder não alcança, são essas terras. Eu jamais dispersaria meus homens para olhar por aquele poço de adubo. Isso o daria liberdade para fazer o que bem entendesse.
— Pensando bem, o velho Nésio tinha uma propriedade por lá, não é?
— Quanto aos negócios do velho, o meu desejo é esquecê-los. Aliás, tenho pensado bem sobre aquela carta e estou certo de que o garoto não me dará ouvidos, mas talvez essa sua teimosia seja exatamente a chave que preciso para convencê-lo. — pensativo, o ministro dizia, balançando com firmeza sua nobre garrafa em sentidos circulares. — Ele é igual ao avô.
— Gyahaha! Já são quantas décadas que os dois não se veem? — gargalhava o velho com sua voz rouca. — Essa audiência será certamente interessante! Com você e o garoto.
— O que está dizendo? Não faz nem mesmo sete anos, seu velho senil. De qualquer forma, quero que traga o comandante Cainfield até mim. Diga-o para que retorne de sua missão o quanto antes. Tenho uma tarefa especial para ele, e dele necessito com urgência!
— Cainfield? O comandante Cainfield? — questionava o velho homem. — Pensei que precisasse do rapaz vivo e inteiro, e não em pedaços! E por acaso, esse não seria também um daqueles que diz serem mais fortes e confiáveis que o garoto?
— Acontece que, como já deu para ver; os homens além do mar de neve estimam muito o sobrenome do garoto, mesmo não o conhecendo. Independente das circunstâncias, se ele não for capaz de enfrentar um bom adversário, será uma grande perda de tempo para todos, além de uma desgraça para a minha imagem. Não precisamos de um espadachim, ou seja lá o que ele for, que só derrube batedores de carteira e bêbados de rua. No entanto, eu não espero me decepcionar. Afinal, se há alguma razão no prestígio de seu sangue, é a força, não é? Seu finado avô deve tê-lo treinado bem; na pior das hipóteses, ele quebraria um, ou talvez dois ossos no processo.
— Lembro-me bem que os dois nunca foram muito chegados, sempre brigando de lá para cá nesse castelo. Será um reencontro agitado! — afirmava o velho. — No entanto, não importava o quanto brigassem, o garoto jamais fora capaz de derrubá-lo uma só vez; eram mesmo como gato e rato. Não está fazendo isso de propósito?
— Não faça perguntas impertinentes, conselheiro. Eu só espero que o rapaz tenha amadurecido, ou pode acabar chegando sem braços.
— Se chegar aqui com aquele atrevimento, temo que seja você quem vai ordenar que os arranquem. — replicou o velho, soprando uma grande rodela esverdeada de seu cachimbo. — Mas mesmo sendo Cainfield, ele não faria nada de tão extremo sem que o senhor o mandasse, claro. O garoto deve chegar inteiro, contanto que você assim ordene.
O ministro, então, com o rosto meio abatido, tentou olhar para um velho relógio no canto do quarto, notando ponteiros tão escuros quanto o seu próprio cômodo negro à noite. Bocejando, ele franziu as sobrancelhas e, exausto como estava, virou-se para o velho conselheiro, dizendo:
— Isso é o que veremos. — terminou. — Por hora, peço licença, conselheiro. Tenho muito a tratar amanhã, e depois, e depois, por isso tenha uma boa noite, e convido-te a deixar os meus aposentos. A essência de seu cachimbo já está me deixando tonto.
— Como quiser, jovem ministro. Agradeço pela bebida, e na próxima vez que resolver ser um bêbado resmungão, não hesite em me convidar para mais uma taça ou três! Mandarei uma carta em contato com Cainfield assim que possível. A propósito, não acha melhor mandar a senhorita Mocha com ele? O homem é confiável, claro, mas pode ser meio imprudente às vezes. — dizia o velho homem já de saída, esgueirando-se por trás da porta de madeira ao fundo do escuro cômodo.
— Que assim seja. Não estou mais tão sóbrio para pensar demais em suas baboseiras; faça como achar melhor. — o ministro replicou abanando as mãos.
— Bem, então assim será. Tenha uma boa noite, excelência! — o velho homem, vulgo conselheiro, então disse ao deixar a sala. Em saída, ele bateu à porta com força, deixando para trás um único abajur aceso e próximo à entrada, que brilhava sutilmente na escuridão do cômodo. Um forte e morno vento, vindo do Oeste, invadiu o quarto soprando fortemente para dentro e fazendo dançarem as cortinas.
Sonolento, o jovem homem, vulgo ministro, virava-se então para trás, encarando a aconchegante e escura paisagem dos seus aposentos. O vento soprava seus cabelos.
— Então o vento está realmente quente, é? — logo disse ele, pouco antes de cair bêbado em sono profundo, ali mesmo em sua escura sacada.
Comments (0)
See all